Pond, “Whatever Happened to
the Million Head Collide” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=_shK53I0JTk
Sentado num café
depois do almoço, à minha frente amesenda um homem aparentemente sexagenário
com barba farta, branca, sem bigode. Dir-se-ia, o arquétipo de um homem árabe.
Na televisão, começa o noticiário da tarde. O jornalista anuncia “imagens chocantes” dos momentos
posteriores aos atentados em Bruxelas. Enquanto o homem à minha frente, o
possível árabe, nem desvia os olhos da caldeirada de bacalhau mesmo estando de
frente para a televisão, o dono do café sentencia: “para alguém filmar isto, é porque estava combinado com os terroristas”.
Nessa altura,
mergulho em pensamentos. E não sei se tenho mais medo de um possível homem
árabe que não se comove com o sangue mostrado pelas televisões, ou da
ignorância do dono do café. O medo é uma armadilha. Sitia. Embacia o juízo.
Julgo, no instante após ouvir o dono do café a perorar, que o medo do medo
destrava o obscurantismo. E no obscurantismo podemos pensar ou agir como de
outra forma não faríamos. (A menos que o dono do café seja empedernidamente
ignorante e acredite que o anónimo que recolheu as imagens estivesse
mancomunado com os terroristas. Nesse caso, é um caso perdido.)
As baias do medo
disparam os alarmes da irracionalidade. É compreensível que quem testemunhou violência
semelhante à dos atentados esteja refém de um trauma que embaraça a lucidez.
Doravante, essas pessoas não serão as mesmas. O que me deixa inquieto não é o
clamor de vingança das vítimas desta violência. É a espiral de desrazão que
toma conta de espetadores desta violência, cidadãos que querem mostrar solidariedade
com as vítimas diretas e que, por se considerarem parte de um grupo atingido,
se acham também vítimas dos atos soezes. Não é o ato em si que me apoquenta: é
defender-se que à violência se deve responder com violência; que as estruturas
que consideramos legítimas devem usar os mesmos métodos que condenamos aos hipócritas
que se servem da clandestinidade para boicotarem a nossa forma de vida. É
escusado dizê-lo, já passou a lugar-comum: pensar assim, e preconizar uma
reação destas, é capitular perante os malditos mosqueteiros do terror. É
admitir, sem o admitir explicitamente, que já perdemos a disputa.
À minha frente já não
está o homem possivelmente árabe. Terminou o repasto, pediu um café, pagou a
conta e foi à sua vida. Sem desviar os olhos para as imagens sangrentas que
ainda passam na televisão. No balcão do café, o proprietário continua a passear
a ignorância enquanto comenta as imagens.
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