14.3.16

Sempre no fio da navalha

Nirvana, “In Bloom”, in https://www.youtube.com/watch?v=PbgKEjNBHqM
Não sabia o que era um sono inteiro. Não sabia o que era um dia sem sobressaltos. Não sabia conjugar verbos que não fossem património de agitação. Escolhia as arestas vivas das pedras. Preferia os descaminhos. Os descaminhos que se desembaciassem pelo caminho. Diante de uma proposta que soasse a rotina, recusava. E, ato contínuo, cuidava de esgravatar no mapa avenidas ardilosas e cheias de precipícios de onde era fácil cair.
Não era cardíaco. Se não, a apoplexia constante já o tinha levado para um cemitério. Tinha um coração enorme. Que precisava das faúlhas que incendiavam o alvoroço constante. Às vezes, diziam-lhe que a vida passava uns milímetros à frente de uma navalha, estando de ponta afiada e com vontade de se cravar no fundo da sua carne. E ele desautorizava a cautela, não dava ouvidos aos precatados conselhos. Ria-se. Num esgar que se confundia com loucura, pois punha um olhar fixo no firmamento e parecia que nada havia em seu redor, enquanto sossegava os mais chegados, assegurando ter a navalha sob rédea curta.
Tinha a certeza que domava a navalha. E que malefícios nenhuns podiam acontecer por a navalha teimar em adejar a poucos milímetros das costas. A navalha parecia um adereço do vestuário. Mais a mais – inquietavam-se os mais chegados – não podia desdenhar da navalha: ela podia cominar ferida grave, ou até a morte; e aparecia sempre na retaguarda. Como podia tutelar a navalha se ela não estava no seu campo de visão?
Os anos iam no seu encalço e não abdicava do precipício à mão de semear. Ele era a bebida, as drogas, os tantos quartos diferentes que perdia a noção de onde estava, a variedade de pessoas de quem depressa perdia o rasto, as mortes dos outros (que não o intimidavam), a promiscuidade, o desmazelo, a roda-viva dos trabalhos incertos e dos incertos réditos, as viagens sem roteiro marcadas de um dia para o outro, a alergia a médicos e medicamentos, a fome por desnecessidade de alimentos, as tantas decisões que seriam matéria-prima de arrependimento mas que nele eram arrumadas num túmulo que encerrava as memórias. A alienação da imortalidade. A desmemória de quase tudo, pretexto para deslaçar os vestígios de raízes que viessem de um apelo qualquer. E a metódica única que o dominava: a recusa dos métodos limitativos da vontade, dos usos e costumes que amordaçavam os outros, e a atração indelével por um abismo ao calhas.
Até ao dia em que se faz notícia, conseguiu andar sempre quatro milímetros à frente da navalha. Com um fio, um muito delgado fio, a separá-lo da navalha.

Sem comentários: