3.3.16

Travões a fundo

CocoRosie, “Lemonade”, in https://www.youtube.com/watch?v=tu3EcAHdHlE
Ah, esta febre de mudança! Esta inquietação com o estabelecido, porque o estabelecido está caduco. Ah, as fontes novas de onde jorra o ouro líquido! E as vozes de um coro de crianças que, julga-se, entoam cantorias diferentes (quando afinal se trata de uma repetição). E, ah!, os planos tão embelezados com as cores enfáticas que assinalam a diferença, quase fazendo acreditar que os tempos prometidos têm uma espessura diferente dos já experimentados.
Mudança de planos. Podemos estar convencidos da decadência arquipélaga e de nós sermos a imagem sumptuosa de uma ilha que se exilou da decadência. O voluntarismo fermenta outra convicção: cada um, como ilha infinitamente minúscula, têm nas mãos os mágicos poderes para congeminar a mudança, para arrematar a decadência e emoldurá-la num lugar onde se comente a arqueologia. Mas não somos nada disso. Não somos heróis, nem o tamanho que há em cada um de nós chega para incendiar a fogueira onde queremos que ardam todos os sedimentos da decadência. Metemos travões a fundo. Afinal, nem sequer importa a decadência que anotamos nos outros (sem cuidarmos de saber se ela não é também predicado nosso).
Travões a fundo. Sem pactuar com os odores fétidos, com as salas alquebradas, com as janelas pútridas, e com todos os arquitetos dos lugares e do pensamento com aversão à mudança. Deixamos o lugar do conservadorismo para os outros, sem chegarmos a perceber se também o habitamos. Não importa. Não importa. Os outros deixaram de ser matéria de relevância. O mundo lá fora, também.
Por isso metemos os travões a fundo. E aceleramos por uma estrada porventura vazia; não queremos saber se transita mais gente por esse caminho, desde que aquiescemos que nos enche as medidas e deixa o sono deitar-se numa alforrada macia. Na exata medida que metemos travões a fundo, aceleramos para o madrigálico que encontramos por dentro de nós. Aceleramos. Com critério. Umas vezes com a suavidade da aceleração discreta. Outras vezes, quando quisermos, metendo a fundo o acelerador que dá lume à vertigem necessária.

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