4.3.16

Trovão

Sensible Soccers, “AFG” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=YwVNKMOBiuQ
É mau feitio?
Às vezes, irascível. Como se metesse a mão por dentro de uma nuvem densa, plúmbea, e de lá trouxesse a carga elétrica que desencrava trovões medonhos. Ou como se fosse uma força telúrica bebendo forças nas raízes da terra, para assentar uma voz estridente que amedronta. E, no entanto, transpira uma cortesia que não combina com as emoções que arremata no púlpito da vontade.
Uma árvore matricial (e quem não se considera árvore matricial, sem decair num narcisismo patológico?). Uma árvore matricial com as raízes fundas e ramificadas numa ampla circunferência subterrânea, espalhando a sua vontade, contaminado (para o bem, ou para o mal) o resto. Inamovível. Perene, como parecem as árvores de grande porte que assentam num tronco largo. Ou um mar abundante e encapelado, um mar indomável sem preciso haver tempestades que o tornem inviável. Por causa do fundo côncavo que é leito propício para as águas tumultuosas que afastam até os mais temerários. Ou, então, a trovoada que se enquista no céu escuro que contagiou o dia com trevas que metem respeito. A trovoada, um vozear ao jeito de ator que coloca a voz cavernosa e que traz das profundezas uma pureza indómita, as mãos enrugadas que convocam o diafragma do tempo, os olhos marejados com a saudade do futuro. O trovão é um protesto. Por aspirar à ambição que contesta o paroxismo da modéstia dos meãos e o sobressalto de quem não é indulgente com o apaziguamento das coisas.
O trovão, às vezes, soa como o troar dos cavalos selvagens que correm na planície. As patas percutindo o chão amalgamado como quem desconta a raiva reprimida sobre as pedras deitadas a preceito. Pois às coisas estéreis não se entrega serventia, nem as que ganham direito a serventia podem ser omitidas. O juízo é o critério.
O piano só com teclas pretas está à espera do músico que o saiba adestrar. Espera-se que a melodia que escorre dos dedos para as teclas do piano seja um eflúvio para o rosto iracundo em desassossego. Espera-se que o trovão desfaça as mágoas condensadas no pretérito imperfeito. Para deixar esvoaçar um porvir que reserva as águas domadas do mar e um espelho debruado a matizes dourados por reflexo do dia soalheiro.
O trovão abona o desassoreamento do ser. Não é mau feitio.

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