Sensible Soccers, “AFG”
(live), in https://www.youtube.com/watch?v=YwVNKMOBiuQ
É mau feitio?
Às vezes, irascível. Como se metesse a mão por dentro de
uma nuvem densa, plúmbea, e de lá trouxesse a carga elétrica que desencrava trovões
medonhos. Ou como se fosse uma força telúrica bebendo forças nas raízes da
terra, para assentar uma voz estridente que amedronta. E, no entanto, transpira
uma cortesia que não combina com as emoções que arremata no púlpito da vontade.
Uma árvore matricial (e quem não se considera árvore
matricial, sem decair num narcisismo patológico?). Uma árvore matricial com as
raízes fundas e ramificadas numa ampla circunferência subterrânea, espalhando a
sua vontade, contaminado (para o bem, ou para o mal) o resto. Inamovível. Perene,
como parecem as árvores de grande porte que assentam num tronco largo. Ou um
mar abundante e encapelado, um mar indomável sem preciso haver tempestades que
o tornem inviável. Por causa do fundo côncavo que é leito propício para as águas
tumultuosas que afastam até os mais temerários. Ou, então, a trovoada que se
enquista no céu escuro que contagiou o dia com trevas que metem respeito. A
trovoada, um vozear ao jeito de ator que coloca a voz cavernosa e que traz das
profundezas uma pureza indómita, as mãos enrugadas que convocam o diafragma do
tempo, os olhos marejados com a saudade do futuro. O trovão é um protesto. Por aspirar
à ambição que contesta o paroxismo da modéstia dos meãos e o sobressalto de
quem não é indulgente com o apaziguamento das coisas.
O trovão, às vezes, soa como o troar dos cavalos
selvagens que correm na planície. As patas percutindo o chão amalgamado como
quem desconta a raiva reprimida sobre as pedras deitadas a preceito. Pois às
coisas estéreis não se entrega serventia, nem as que ganham direito a serventia
podem ser omitidas. O juízo é o critério.
O piano só com teclas pretas está à espera do músico que
o saiba adestrar. Espera-se que a melodia que escorre dos dedos para as teclas
do piano seja um eflúvio para o rosto iracundo em desassossego. Espera-se que o
trovão desfaça as mágoas condensadas no pretérito imperfeito. Para deixar
esvoaçar um porvir que reserva as águas domadas do mar e um espelho debruado a
matizes dourados por reflexo do dia soalheiro.
O trovão abona o desassoreamento do ser. Não é mau
feitio.
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