31.5.16

A vaca voadora, a vaca leiteira e a vaca fria

Davendra Bahnart, “Carmensita”, in https://www.youtube.com/watch?v=Q-ezaxiKe-Y    
As metáforas mostram imagens sugestivas que dão ênfase a uma mensagem. Contêm linguagem que remete para o simbólico, ou para o codificado. As metáforas alisam o terreno áspero, tornando acessível o que, de outro modo, só é acessível a peritos. Têm o condão de simplificar a mensagem, democratizando a sua hermenêutica.
Há metáforas contundentes, que extraem do objeto metaforizado todo o sumo que pretendem legar. E há metáforas risíveis, mostrando que os seus fautores tropeçaram num momento infeliz quando as tiraram da cartola. Pretender que os desafios da governação assumem impossíveis, como se de uma vaca voadora se tratasse, vai para além de uma dimensão poética que muitos queiram ver contida na metáfora. É uma derrapagem. Dir-se-á que na comunicação política tudo é estudado ao milímetro, que as encenações são zelosamente montadas e que equiparar os desafios da governação ao impossível de uma vaca voadora tem uma intencionalidade latente. Não contesto. Não admito que o primeiro-ministro se tenha lembrado, em cima do momento, de oferecer uma vaca voadora à ministra. Este episódio não faz parte daqueles episódios (quase todos risíveis) de lapsos de comunicação dos atores políticos, quando lhes sai a primeira coisa pela boca fora e, sem surpresa, essa coisa é um disparate qualquer.
Havendo intencionalidade e um guião bem preparado, o que talvez tenha escapado aos consultores de imagem do governo é a mensagem embebida na metáfora da vaca voadora. Primeiro, admite-se que governar é um desafio, o que não é novidade. (Nunca é novidade, porque se dirá, sempre, que a governação de hoje tropeça no legado – invariavelmente mau – da governação anterior, especialmente quando ela foi de cor política diferente. É uma metódica desresponsabilização de quem governa, para que sejam descontados os efeitos que vêm de trás – cumulativamente de trás.) Segundo, atirar uma vaca voadora para o regaço de uma ministra é próprio de quem lhe diz “desembarace-se”, ou “agora fica nas mãos de uma mítica figura sebastiânica”, ou “vamos navegar por estima, esperando que o mar nos leve para onde quiser.”
O primeiro-ministro devia ter oferecido à ministra uma vaca leiteira, em vez de uma vaca voadora. Se o que vem pela frente é um mar hercúleo de desafios tangentes às impossibilidades, mais vale organizar preces aos deuses para que estes sejam generosos na hora de distribuir equânimes doses de sorte. Daí, a vaca leiteira. Ou então, o primeiro-ministro foi desastrado e anunciou à pátria que já percebeu que tem uma vaca fria nas mãos. Para ver se, pelo caminho, a pátria o vai desculpando de qualquer coisinha.

30.5.16

Arroz doce

Ty Segall and the Muggers, “Candy Sam” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vqkqsS2uxis
Falava-se de pequenos prazeres. Daqueles que enchem as medidas. Um paradoxo cheio de sentido: são as pequenas coisas, que por pequenas serem estão cheias de preciosidade, que fazem uma bolsa de ouro. É como ensinam os vilipendiados economistas: uma questão de escassez de recursos. Os que rareiam conseguem figurar no rol dos mais valiosos. O que os economistas não aprendem é a medida da subjetividade: as pessoas são diferentes no comportamento perante as coisas valiosas. São esses comportamentos que determinam, para cada pessoa, o valor de uma coisa.
Ele dizia que o arroz doce estava entre as coisas de maior riqueza. Ela perguntou se comia arroz doce muitas vezes. Ele não sabia quantas eram muitas vezes e pediu ajuda no esclarecimento do assunto quantitativo. Ela devolveu a incumbência: ele é que sabia quantas vezes podiam figurar como muitas. Não era interpelação despicienda: mal fosse quantificado o limiar das muitas vezes, assim se saberia se o arroz doce preenchia as condições da escassez para ser reconhecido como iguaria valiosa. Puseram-se de acordo: ele admitiu que vezes suficientes, na ingestão de arroz doce, seriam três, no máximo quatro, em cada calendário anual. Ela aceitou a formulação – parecia-lhe uma razoabilidade.
Ele começou a descrever a constelação de sentidos que o invadia de cada vez que metia à boca uma colherada de arroz doce. Era um prazer daqueles em que os olhos espontaneamente se fecham, como se o seu encerramento ajudasse a fruir os paladares que concorriam nas papilas gustativas. A textura tinha de obedecer a certos predicados: não podia ser leitosa, nem podia estar a preceito de serem cortadas talhadas inteiras. A cozedura não podia passar do período estabelecido nos tratados pantagruélicos; ovos muito passados sobrepor-se-iam aos demais sabores (a menos que se abusasse na dose de canela; só que, então, ficaria a predominar o sabor deste condimento sobre o resto e já nem teria propriedade falar-se de arroz doce, mas de uma mistela qualquer com aroma a canela). O açúcar tinha de estar na dose certa, para não emprestar um adocicado extremo (que ditaria o rápido enjoamento) nem para retirar carácter à iguaria (por carência de açúcar).
Ela perguntou se já não pusera a hipótese de aumentar a dose anual de ingestão de arroz doce, tantos eram os deleites de cada vez que um prato da iguaria, com colher a preceito, parava à sua frente. Ele disse que não. Que gostava de coisas assim, das que hasteiam prazeres que convocam os sentidos prolíficos, sem passarem da medida certa. E antes que ela voltasse a insistir com nova interrogação (“o que tens por ‘medida certa’?”), ele antecipou-se e pôs sentença na conversa: “a medida certa é a que tiveres por ajuizada. Varia de pessoa para pessoa. E de instante para instante”.
Sem demoras, virou o rosto na direção da mesa da cozinha, onde um prato de arroz doce ainda fumegava, acabado de sair da confeção: “agora vou-me ao arroz doce, se me dás licença.” E fechou-se para o mundo durante as colheradas que demorou a exaurir o prato de arroz doce.

27.5.16

Atualização

The Dream Syndicate, “Medicine Show” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=k6_MLzj_l7A
I
Manda os pés para o lugar onde as águas do mar bordejam o areal. Ou manda-os para um miradouro de onde consigas ver uma paisagem sem fim. Manda os pés para onde te convocar um repasto de modernização, para onde haja subsídios que sustentem a mudança. Vais ver que os ares diferentes, em cadenciado movimento de oxigenação do pensamento, são medicinais. Dir-se-ia providenciais, para não te achares metido dentro da pequenez de ti e seres o primeiro a ditar o cansaço da tua pessoa. (É que, a seguir a ti, outros poderão vir a decretar o mesmo.)
II
Não incenses os livros que deixaram marca no teu devir, antes de o conheceres. Pois um livro não se destrói – não cometas esse crime capital. Procura novas literaturas. Novos autores. Procura novas formas de escrita. Novos enredos, onde possivelmente a criatividade te deixe sem gota de sangue perante a imprevista trama congeminada. Abre, de par em par, as janelas às narrativas que os novos tempos inauguraram. E vai com essas neófitas narrativas.
III
Convence-te que regressar a lugares já visitados é uma usura do tempo. Evita as revisitações, sob pena de te sentires sitiado por uma nostalgia que sela a vacuidade do tempo pretérito (não do tempo em si; da insistência em evocá-lo). Pega num mapa e deixa o dedo indicador percorrê-lo, detendo-se nos lugares que nunca tiveram os teus olhos como testemunhas. Reinventa-te nesses novos lugares demandados. Cresce de mão dada com os rudimentos que eles têm para te legar. Por mais velho que te sintas, não há tempo a perder no processo de crescimento. Na aprendizagem imorredoira.
IV
Embolsa as palavras gastas. A descoragem timorata. As indecisões que coíbem os movimentos. Embolsa, também, preconceitos – os que admites e aqueles de que vieste em caçada depois de demorada exegese interior. Embolsa o feitio que tens como iracundo. Mete os olhos no tapete que se ajoelha sob os teus pés, menoscaba o tempo que não rima com o conhecimento atual. Recusa as algemas que projetas vindas do exterior, mas que são o produto da incapacidade para lidares com aquela parte de ti que julgas ser insuportável.
V
Assina um contrato. Contigo mesmo: atualiza-te. Num arrebatamento constante, como se uma lareira não perdesse a chama vivaz mesmo não sendo nutrida há tempo longo a esta parte.