18.4.17

Correio atrasado (23)


The Cult, “She Sells Sanctuary”, in https://www.youtube.com/watch?v=cCp-BOeVzKk    
Guardou o dia para fazer de conta que era mendigo.
A observação do dia anterior ficou a adejar sobre o pensamento, incessantemente. Era uma novidade. Nunca fora sensível à miséria. Quando era carteiro, cruzava-se todos os dias com a pobreza. A distribuição do correio levava-o a sítios miseráveis, lúgubres, pestilentos, onde vivia gente sem posses. Queria acreditar que a carapaça que pusera sobre si mesmo era propositada, um pouco como acontece com os médicos, insensíveis aos padecimentos de quem lhes vem calhar às mãos. Se assim não fosse, a sua função quotidiana era mais pesarosa e tornava-se insuportável viver nessas condições.
Na sua maneira de ver, o distanciamento de casa e o afastamento da distribuição do correio destruíram a carapaça. No dia anterior, ficou impressionado com o quadro que o jovem mendigo na companhia do cão ofereceu ao seu olhar. De tal forma que decidiu, mal despontou a alvorada, na primeira resolução ao acordar, que aquele dia seria reservado para fazer de conta que era mendigo. Queria perceber o que sentia um mendigo exposto à comiseração dos passeantes. Queria ter uma noção da dimensão da generosidade das pessoas ao serem confrontadas com um pedinte de mão estendida. Teria de encenar a personagem no melhor que conseguisse. Foi à mala resgatar as roupas mais gastas. Rompeu as calças com uma navalha e foi ao jardim esfregá-las na terra ainda húmida. Os sapatos que já tinha destinado ao lixo por estarem rombos, foram recuperados a tempo. Não tomou banho. Passou as mãos nos restos de uma frigideira que tinha ficado por lavar e untou o cabelo, desgrenhando-o de seguida. A barba de quatro dias estava a preceito.
Saiu à rua. Ainda não tinha um conhecimento de Vancouver ao ponto de saber, de olhos fechados, quais as ruas mais movimentadas. Nos dias que levava de Vancouver, percebera que não era uma cidade visitada por turistas (pois os turistas aferem-se à distância, com os olhares rasgados ao alto, mapas nas mãos e câmaras fotográficas a tiracolo, em andar necessariamente vagaroso). Não tinha utilidade ir em demanda das ruas frequentadas por turistas. Deslocar-se-ia para uma rua vizinha do lugar onde, na véspera, esteve a observar o mendigo acompanhado do cão. Sabia ser uma rua com muita gente, sem automóveis, na zona comercial e financeira da cidade.
Escolheu um sítio na confluência de duas das principais artérias de Vancouver. Desse modo, estava visível para as pessoas que circulassem de uma rua para a outra. Trazia consigo um cartão resgatado ao lixo que serviria de amparo ao corpo nas longas horas que estava disposto a simular a condição de pedinte. Acomodou-se. Teria de pôr um semblante triste. Faria os possíveis para projetar o olhar ausente no infinito, imitando o mendigo que esteve a estudar no dia anterior. Não tinha a certeza de se sair bem na empreitada: nunca tivera grande jeito para fazer de conta e o teatro (na posição de ator) não era o seu forte. Tirou uma lata vazia de feijão da algibeira do casaco encardido, depondo-a à frente dos pés. Seria o lugar onde os passeantes depositariam, se estivessem dispostos, o produto da sua bondade. Noutro cartão (mais pequeno) escreveu em inglês umas curtas palavras de circunstância que tinham o propósito de desatar a generosidade de quem passasse: “Please, help me. I’m homeless. I’m starving.” O palco estava montado. Prometeu que o pecúlio seria destinado ao mendigo que fora sua inspiração.
As horas foram passando e não dera conta de grande bondade dos habitantes de Vancouver. As pessoas passavam, céleres, como se fosse possível todas estarem atrasadas para qualquer coisa. É um hábito estranho, este: ou as pessoas são lídimas atoras, fingindo uma pressa que não têm, ou se estão genuinamente em atraso para o que quer que seja é sinal que não são diligentes a gerir o tempo que têm nas mãos. Podia ser que fosse um misto das duas hipóteses. Queria acreditar, contudo, que houvesse mais gente a encaixar-se no segundo arquétipo. Ao menos, não teria de reconhecer que o fingimento dava cobertura à falta de vontade das pessoas para serem bondosas. O primo Arnaldo subiu outra vez aos pensamentos. Estaria o Arnaldo certo ao diagnosticar o coração empedernido dos cidadãos de lugares que eram a imagem viva do capitalismo? A ausência de bondade estava correlacionada com a abastança de uma sociedade, agravando as injustiças na distribuição da riqueza?
Afastou o primo Arnaldo das cogitações. Para a função ser levada a sério, não almoçaria. Se teimasse em vestir a personagem do pedinte, também não jantaria. Queria saber como se sente uma pessoa despojada de mantimentos durante um dia inteiro. Concedia: talvez fosse apenas uma amostra das privações dos mendigos, que podem passar dias a eito amordaçados pela fome. Logo a seguir, aliviou as cores negras da hipótese: de certeza que, em Vancouver, também havia filantropos dedicados a distribuir um módico de alimentos pelos sem-abrigo.
A meio da tarde, a bondade continuava a escassear. As pessoas continuavam reféns da azáfama. Na sua maioria, pleiteavam com o olhar, desviando-o do carteiro-mendigo refastelado no chão. Queriam simular indiferença, para não serem chamadas à colação pela consciência. O pecúlio era modesto. Um punhado de moedas e uma nota de cinco dólares, deixada por uma senhora velhinha que usava uma roupa quase tão andrajosa como a do carteiro em pose de mendigo. Ele estava cansado da encenação. Começou a ser tomado de assalto por outras dores, ainda mais maçadoras: o que se propôs a fazer naquele dia, colocava-o ao nível de um canalha de fina estirpe. Era um insulto ao mendigo que fora seu caso de estudo no dia anterior – e a todos os demais mendigos e pessoas mergulhadas na pobreza, em todos os lugares. A mendicidade não se simula, muito menos nestes preparos e com o propósito que o carteiro concluiu, num volte-face do seu pensamento.
Levantou-se e caminhou para a rua vizinha, onde na véspera esteve em observação ao jovem mendigo protegido pelo seu cão. O homem encontrava-se no mesmo lugar. O cão em pose de cão-de-guarda, sentado ao seu lado. O mesmo olhar inerte, petrificado na ausência. Aproximou-se. A caneca metálica estava pousada à frente do mendigo. Estava ainda mais vazia do que a lata de feijão vazia onde as esmolas foram depositadas a crédito do carteiro-pedinte. O carteiro baixou-se e olhou nos olhos do mendigo por um demorado momento. Queria vê-los de perto. Queria provar a sua imensa melancolia. Em silêncio, o carteiro verteu as moedas e a nota de cinco dólares na caneca metálica do mendigo, que continuou impassível. O carteiro não se incomodou. Não estava à espera de agradecimento. Já chegava a torpeza de se fazer passar por pedinte. Já chegava o ultraje de que fora autor.
Levantou-se e caminhou pela rua fora cruzando-se com uma multidão de homens e mulheres bem-apessoados. Tão bem-apessoados quanta a indiferença que mostravam uns pelos outros.

Sem comentários: