Trentemøller, “Sycamore Feeling” (Live
at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=AJ3WzRMnWFM
Foi ao fundo do sono e voltou. Tudo era
infértil como lhe parecera antes do sono promissor. Avultavam os suores
cansados de um pretérito de que não guardava vaidade. Subira muitas enseadas oblíquas,
com os degraus assimétricos. Pisara muito chão pedregoso. Reprimira lágrimas
(porque sempre ouvira dizer um dos maiores disparates que pode ser dito: que os
homens não choram e, em caso de prantos à mostra, requisitam-se as dúvidas
sobre se é homem). Tinha a certeza de não ficar um vestígio seu para a
posteridade – o que não o sobressaltava e, logo a seguir, era motivo de desconforto
interior.
Deixara de fazer muitas coisas
coibido por um embaraço que dominava a vontade. Perseguira propósitos de que
nunca chegou a tomar conhecimento. Depressa se esquecia que tinha calculado
propósitos tais. Oxalá pudesse o esquecimento caldear o olhar pelo retrovisor. Que
mania incorrigível: nesta fuga, teimava (quando não estava imerso na boémia) em
trazer reminiscências do passado, quase sempre daquelas que não eram caução de
boa reputação. E se ele se importava com a reputação! Por mais que se tentasse
convencer que a credibilidade só importa aos vapores interiores, decaía no
sentimento banal de quem tanta importância atribui ao olhar que os outros
deitam na própria pessoa. Era mais um daqueles exemplos de divergência
interior. Jurava alinhavar por uma bitola e, depois, os atos encaixavam-se na
sua antítese.
Enquanto a paisagem continuava igual
há tempo (que parecia) sem fim, e pondo em equação métodos para matar o tempo e
fingir a paisagem, ao menos enquanto a pradaria teimasse em murar o autocarro,
teve uma inspiração: o que poderia dizer de si mesmo que julgasse de orgulho? Não
era aceitável, até para os parâmetros de alguém tão irascivelmente feroz contra
as suas raízes, que tudo o que viesse de trás fosse tingido pelos maus
pergaminhos. Haveriam alguns excertos de ter unção favorável – por mais que,
outra vez, o seu instinto não recomendasse a aferição pela bitola usada pelo
olhar exterior, pois o olhar exterior não se condói com as suas dores
interiores, nem exulta de felicidade ao dar-se como testemunha de possíveis
proezas. Mas era incorrigível, esta deriva. Se, ao início, considerava a deriva
prova de como não conseguia escorregar para o pasto do narcisismo, depressa a
conclusão ficou coberta por cores diferentes: a muita importância conferida aos
juízos alheios selava um narcisismo escondido, protestando a aferição de si
mesmo pelo olhar dos outros. Para piorar o estado das coisas: por aquilo que
ele projetava aferindo o território pertença dos outros, julgando serem os juízos
por eles proferidos, como se houvesse autenticidade no exercício.
Já estava (como é costume) a
desviar-se do essencial, pisando o chão da especulação intelectual. Não era por
acaso que os amigos da escola, na altura em que andou na escola, lhe chamavam “o
filósofo”. Sabia que tinha um pensamento complexo. Divagava amiúde. Era fácil
perder o fio à meada, entretido em considerações fátuas, que só não o eram
inteiramente porque ele se entretinha com essas considerações, sem qualquer propósito
no andamento das demandas entre mãos. Era como se fosse uma forma de fuga. Magistral,
a fuga deste modo: ao decair sucessivamente para elucubrações laterais,
desfocava-se do que fora ponto de partida. Tão enovelado o pensamento ficava
que nem conseguia recuperar a pergunta de partida, a pergunta que arroteara o
caminho do pensamento até àquele momento. Tinha noção disso. Há muito tempo.
Muitas vezes, ensaiava métodos internos, com exigência da disciplina mental,
para se livrar desse opróbrio pessoal. Não ganhava tempo, nem medalhas que se
vissem, quando se sitiava no emaranhado das cordas de uma guitarra que se
entrelaçavam umas nas outras de tal forma que não conseguia deslaçar o
emaranhado.
Estava outra vez em plena fuga. Desta
vez, da pergunta que fora a casa de partida para um pensamento em plano já inclinado.
Perguntara-se se não era capaz de atirar para cima de um bloco de notas, na
letra arrevesada que o tremelicar do autocarro permitisse, meia dúzia de
proezas. Não seriam os estudos. Não era a profissão. Não podia ser a vida
familiar. Julgava que também não podia atribuir créditos ao feitio, mas só por
causa da tremenda confusão mental que o inundava, sem remédio (assim julgava). Não
era a simpatia. Não era referência para ninguém (e, em boa verdade,
convencera-se que seria dos derradeiros proveitos a querer usufruir, antes de
dar consigo refém de sonhos, sem serem no decurso de um sono, vendo-se num
palco aplaudido pelos demais desde a plateia, imensa).
Insistia no erro de critério: em vez
de partir de demanda das proezas que podiam ser arregimentadas a seu favor,
começou por exclusão de partes. “Não era isto, nem aquilo, nem aqueloutro” – e por
aí fora. Se calhar, era um caso perdido. Em seu próprio desfavor. Que meandros
se sobrepunham na, decerto, incontingente empreitada de esboçar meia dúzia de momentos
que, até ele, incorrigivelmente cético com a sua existência pretérita, podia
recuperar para o altar dos orgulhos? Não interessava dar resposta a esta
interrogação. Se não, estava outra vez a impedir-se através do embaraço das
coisas laterais que tinham mais voz do que as coisas essenciais.
Folgou não ter medido o tempo entre o
desafio de alinhavar os episódios que o deixaram orgulhoso e o momento em que
parecia dar conta de que não era capaz da empreitada. Ou talvez não. Corresponderia,
tamanha procrastinação, a um húmus seu, medrando com a força das coisas
despojadas da sua fertilidade. Sem talvez saber, era fautor da uma escondida
frivolidade de que era vítima maior. Desta vez, tinha de ser diferente. Vincou os
punhos nas costas da cadeira da frente e jurou que não sairia do autocarro na
próxima paragem se não conseguisse, até lá, inventariar meia dúzia de episódios
entendidos como proezas.
Já tinha idade para manifestar madurez.
Faltava-lhe lucidez, ou a que havia não quadrava com a idade do cartão de cidadão.
Faltava a coragem de deitar para as margens da indiferença uma certa imagem de
si que gostaria de ver reproduzida através de um reconhecimento exterior. Faltava
a coragem de adstringir o beco aonde se trouxera, barricando-se de si mesmo. Pois
era disso que se tratava: parecia seu maior mal ser o medo de entender que era
uma pessoa boa.
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