25.4.17

Correio atrasado (28)


Trentemøller, “Sycamore Feeling” (Live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=AJ3WzRMnWFM    
Foi ao fundo do sono e voltou. Tudo era infértil como lhe parecera antes do sono promissor. Avultavam os suores cansados de um pretérito de que não guardava vaidade. Subira muitas enseadas oblíquas, com os degraus assimétricos. Pisara muito chão pedregoso. Reprimira lágrimas (porque sempre ouvira dizer um dos maiores disparates que pode ser dito: que os homens não choram e, em caso de prantos à mostra, requisitam-se as dúvidas sobre se é homem). Tinha a certeza de não ficar um vestígio seu para a posteridade – o que não o sobressaltava e, logo a seguir, era motivo de desconforto interior.
Deixara de fazer muitas coisas coibido por um embaraço que dominava a vontade. Perseguira propósitos de que nunca chegou a tomar conhecimento. Depressa se esquecia que tinha calculado propósitos tais. Oxalá pudesse o esquecimento caldear o olhar pelo retrovisor. Que mania incorrigível: nesta fuga, teimava (quando não estava imerso na boémia) em trazer reminiscências do passado, quase sempre daquelas que não eram caução de boa reputação. E se ele se importava com a reputação! Por mais que se tentasse convencer que a credibilidade só importa aos vapores interiores, decaía no sentimento banal de quem tanta importância atribui ao olhar que os outros deitam na própria pessoa. Era mais um daqueles exemplos de divergência interior. Jurava alinhavar por uma bitola e, depois, os atos encaixavam-se na sua antítese.
Enquanto a paisagem continuava igual há tempo (que parecia) sem fim, e pondo em equação métodos para matar o tempo e fingir a paisagem, ao menos enquanto a pradaria teimasse em murar o autocarro, teve uma inspiração: o que poderia dizer de si mesmo que julgasse de orgulho? Não era aceitável, até para os parâmetros de alguém tão irascivelmente feroz contra as suas raízes, que tudo o que viesse de trás fosse tingido pelos maus pergaminhos. Haveriam alguns excertos de ter unção favorável – por mais que, outra vez, o seu instinto não recomendasse a aferição pela bitola usada pelo olhar exterior, pois o olhar exterior não se condói com as suas dores interiores, nem exulta de felicidade ao dar-se como testemunha de possíveis proezas. Mas era incorrigível, esta deriva. Se, ao início, considerava a deriva prova de como não conseguia escorregar para o pasto do narcisismo, depressa a conclusão ficou coberta por cores diferentes: a muita importância conferida aos juízos alheios selava um narcisismo escondido, protestando a aferição de si mesmo pelo olhar dos outros. Para piorar o estado das coisas: por aquilo que ele projetava aferindo o território pertença dos outros, julgando serem os juízos por eles proferidos, como se houvesse autenticidade no exercício.
Já estava (como é costume) a desviar-se do essencial, pisando o chão da especulação intelectual. Não era por acaso que os amigos da escola, na altura em que andou na escola, lhe chamavam “o filósofo”. Sabia que tinha um pensamento complexo. Divagava amiúde. Era fácil perder o fio à meada, entretido em considerações fátuas, que só não o eram inteiramente porque ele se entretinha com essas considerações, sem qualquer propósito no andamento das demandas entre mãos. Era como se fosse uma forma de fuga. Magistral, a fuga deste modo: ao decair sucessivamente para elucubrações laterais, desfocava-se do que fora ponto de partida. Tão enovelado o pensamento ficava que nem conseguia recuperar a pergunta de partida, a pergunta que arroteara o caminho do pensamento até àquele momento. Tinha noção disso. Há muito tempo. Muitas vezes, ensaiava métodos internos, com exigência da disciplina mental, para se livrar desse opróbrio pessoal. Não ganhava tempo, nem medalhas que se vissem, quando se sitiava no emaranhado das cordas de uma guitarra que se entrelaçavam umas nas outras de tal forma que não conseguia deslaçar o emaranhado.
Estava outra vez em plena fuga. Desta vez, da pergunta que fora a casa de partida para um pensamento em plano já inclinado. Perguntara-se se não era capaz de atirar para cima de um bloco de notas, na letra arrevesada que o tremelicar do autocarro permitisse, meia dúzia de proezas. Não seriam os estudos. Não era a profissão. Não podia ser a vida familiar. Julgava que também não podia atribuir créditos ao feitio, mas só por causa da tremenda confusão mental que o inundava, sem remédio (assim julgava). Não era a simpatia. Não era referência para ninguém (e, em boa verdade, convencera-se que seria dos derradeiros proveitos a querer usufruir, antes de dar consigo refém de sonhos, sem serem no decurso de um sono, vendo-se num palco aplaudido pelos demais desde a plateia, imensa).
Insistia no erro de critério: em vez de partir de demanda das proezas que podiam ser arregimentadas a seu favor, começou por exclusão de partes. “Não era isto, nem aquilo, nem aqueloutro” – e por aí fora. Se calhar, era um caso perdido. Em seu próprio desfavor. Que meandros se sobrepunham na, decerto, incontingente empreitada de esboçar meia dúzia de momentos que, até ele, incorrigivelmente cético com a sua existência pretérita, podia recuperar para o altar dos orgulhos? Não interessava dar resposta a esta interrogação. Se não, estava outra vez a impedir-se através do embaraço das coisas laterais que tinham mais voz do que as coisas essenciais.
Folgou não ter medido o tempo entre o desafio de alinhavar os episódios que o deixaram orgulhoso e o momento em que parecia dar conta de que não era capaz da empreitada. Ou talvez não. Corresponderia, tamanha procrastinação, a um húmus seu, medrando com a força das coisas despojadas da sua fertilidade. Sem talvez saber, era fautor da uma escondida frivolidade de que era vítima maior. Desta vez, tinha de ser diferente. Vincou os punhos nas costas da cadeira da frente e jurou que não sairia do autocarro na próxima paragem se não conseguisse, até lá, inventariar meia dúzia de episódios entendidos como proezas.
Já tinha idade para manifestar madurez. Faltava-lhe lucidez, ou a que havia não quadrava com a idade do cartão de cidadão. Faltava a coragem de deitar para as margens da indiferença uma certa imagem de si que gostaria de ver reproduzida através de um reconhecimento exterior. Faltava a coragem de adstringir o beco aonde se trouxera, barricando-se de si mesmo. Pois era disso que se tratava: parecia seu maior mal ser o medo de entender que era uma pessoa boa.

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