Sigur Rós, “Ekki Múk”, in https://www.youtube.com/watch?v=2cAxLZpelmQ
Teria de abrir a escotilha aos atos
suscetíveis de vaidade. Sabia que se desse corda às divagações, em jeito de evasão
indeclinável, começaria a perorar sobre a ferrugem que acintosamente prendia a
escotilha ao arnês, ou sobre os parafusos enxertados por um mecânico desastrado
(uma sua outra personificação com propensão para o boicote quando o céu se
despejava de nuvens) que obrigava ao uso de força sobre-humana para libertar as
amarras da escotilha. Tinha de parar antes que medrasse no imponderável do
detalhe sem significação visível.
A escotilha soltou-se. Não ofereceu
resistência. Podia meter a cabeça numa atmosfera diferente. O ar respirado
parecia mais leve. Dir-se-ia: do lado ocultado pela escotilha hermeticamente fechada
não havia poluição sedimentada no alfobre do tempo. Tinha a impressão de se ter
emancipado do ar tempestuoso e, do lado desembaciado da escotilha, ter
redescoberto o significado de bonança. O olhar fixou-se no horizonte. Uma tela
passava um filme e para o rodapé eram atirados fragmentos resgatados aos atos
suscetíveis de orgulho.
“Precisava
deste bálsamo?” A interrogação depreendeu-se do movimento inusitado a que
se dera, porque a catarse habitualmente prendia-se às nuvens plúmbeas que
adejavam (e com iteração) sobre a conturbada cabeça. Não demorou a responder,
com uma firmeza que seria impossível na véspera: sim, fazia sentido destronar
do silêncio e do esquecimento os atos que podiam acender uma centelha de
vaidade que daria outra iridescência à sua pessoa. Talvez fosse tempo do
ensimesmar. Arrefeceu a chama que acendia este entusiasmo. Não podia, como era
habitual, deixar-se dominar pelos braços do vetusto exagero. Esse sempre fora
um dos males que o apoquentava.
Episódio número um: era adolescente e
lembra-se de ter impedido um menino do afogamento certo numa piscina. A piscina
estava quase sem gente. Ao contrário do que era habitual, naquele fim de tarde
apeteceu um banho tardio. Nem fazia grande sentido, o banho tardio, pois a
nortada era a mesma dos dias anteriores e a água estava fresca. Nadava sem
pressa quando sentiu, atrás de si, azáfama e alguns gritos entaramelados com o
borbulhar da água. Um menino debatia-se com a profundidade da piscina que não
quadrava com a sua dimensão, em não sabendo nadar. Nadou três braçadas e chegou
junto do rapaz, levantando-o com a força de um dos braços enquanto o outro
mantinha o corpo à superfície. O menino, em apoplexia, tossicava a meias com o
pânico, trepando para o seu pescoço, o que tornou pesada a tarefa do
salvamento. O rapaz esperneava enquanto se debatia com um princípio de sufocação,
tossindo golfadas de água para fora dos pulmões que iam parar ao seu pescoço.
Conseguiu acalmar o menino. A meio da
piscina, estabilizou o corpo carregado com o menino. Nadou, a custo, até a
conseguir ter pé outra vez. Subiu o rapaz para o parapeito da piscina e
perguntou se estava bem. O rapaz acenou com a cabeça, sem conseguir falar. Levantou-se
e fugiu a correr, tomado pela vergonha da ousadia que ia custando a vida, se o
(futuro) carteiro em sabática não tivesse coincidido na piscina. Não estava
ninguém a tomar conta do rapaz. E ninguém viu, desde as cadeiras reclinadas da
piscina, ou das varandas dos apartamentos a ela contíguos, a sua proeza.
Ao jantar contou aos pais, derrotando
a hesitação. Ninguém lhe deu atenção. Sentiu, até, algum escarnecimento nas
perguntas feitas pelo pai (porventura de verificação da veracidade dos factos
narrados). Só se arrependeu de ter contado que salvou o rapaz do afogamento. O resto
não importava. Nem sequer a fuga apressada do rapaz que tirou dos braços da
morte, sem ter tempo para esboçar um agradecimento. A devolução à vida não
merece gratidão. Partiu do princípio que é um instinto inerente à condição
humana. Estranhamente, sentiu-se mais contente por ter estendido a mão a um náufrago
moribundo, do que ter retirado o rapaz dos braços hediondos da morte.
Episódio número dois: ainda rapaz com
idade de escola primária, passeava nas imediações da escola com o colega de
carteira. Ao dobrarem a esquina, deixando a avenida movimentada em direção de
uma rua estreita e secundária, estava uma carteira perdida no chão. Ele apanhou
a carteira e abriu-a. Estava repleta de notas. Tiraram as notas e contaram o
pecúlio. Era muito dinheiro. (Ao contrário dos tempos de agora, as crianças de
então já tinham uma noção da serventia do dinheiro.) Noutro compartimento da
carteira estavam os documentos pessoais do portador. Era um homem um pouco
calvo, com bigode raso e orelhas prominentes. Zombaram das orelhas. Ato contínuo,
olharam um para o outro. Tinham à sua mercê uma fortuna. Podiam não contar aos
pais e gastar o dinheiro em segredo, naquilo que as crianças de então gostariam
de gastar caso tivessem em mão uma quantia tão grande. Olharam-se outra vez, em
demorado silêncio. Começaram a perceber, pela duração do silêncio, que os propósitos
materialistas não podiam ser consumados: “este
dinheiro não nos pertence”, disse para o amigo, que anuiu: “tens razão. Deve fazer falta ao dono da
carteira.”
(Na sua ingenuidade, não lhes ocorreu
– como ocorreria se alguns anos mais estivessem depostos nos seus corpos – que tantas
notas amealhadas numa carteira podia ser sinal de dinheiro que se preparava
para uma operação de branqueamento. Com aquela idade, só sabiam da existência
de máquinas de lavar roupa e de lavar louça.)
Ele guardou a carteira em lugar
seguro, dentro da mochila onde estavam os livros da escola. Foram à esquadra da
polícia vizinha da escola. Narraram o acontecimento ao polícia que estava no
balcão de atendimento. O polícia felicitou-os, guardou a carteira e prometeu
que seria devolvida, e intacta, ao dono. Dias depois, a escola foi informada da
proeza dos rapazes. Receberam uma comenda cada um em cerimónia a que assistiram
todos os professores, alunos e funcionários da escola, na presença do homem que
perdera a carteira, do chefe da polícia e do presidente da câmara.
(O presidente da câmara precipitou-se
a tirar uma fotografia com os dois rapazes, fotografia que saiu na edição do
dia seguinte do jornal local, o edil de sorriso rasgado como se a proeza
tivesse sido sua, e os rapazes tímidos e assarapantados na presença de homem tão
frenético).
Ainda ouviu um professor a comentar
com o outro, no fim da cerimónia, enquanto olhava com atenção e vaidade para a
medalha recebida: “pobres rapazes, nem
sabem para que serve o dinheiro. Ai se fosse comigo, a esta altura a minha
conta no banco estava muito gorda.”
Episódio número três: pouco tinha
passado dos vinte anos quando se apaixonou por uma rapariga. Sentia não lhe ser
indiferente. Ela corava na sua presença e não conseguia reprimir olhares
indiscretos. Mas suplicava para ele não investir, pois o namorado tinha feito o
pedido de casamento há poucas semanas. Ele combateu-se, entrou em negação. E retirou-se,
jurando que não queria voltar a ver a rapariga. Sentiu orgulho na recusa em
assumir o que tomara conta de si. Por
respeito à rapariga. Nesse mesmo tempo, percebeu que começara aí o tirocínio nos
efúgios sucessivos em que se especializou.
Deu por concluída a evasão pela
escotilha. Preso, outra vez, às divagações estéreis, ao perceber que aquele
episódio fora de vã glória, esqueceu-se de outros episódios com idêntica
igualha. (Ou, talvez, já não houvesse mais para arregimentar).
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