Stone Temple Pilots, “Plush”,
in https://www.youtube.com/watch?v=V5UOC0C0x8Q
Também havia pobreza e mendigos num
país tão rico. Estava diante do primeiro mendigo de rua desde que chegou a
Vancouver. Era, talvez, uma ideia feita, a de que países com abastança não têm
pobres para mostrar. Os filmes pertencentes à dita colonização cultural
americana tinham a culpa nesta perceção formatada. Ou era por causa da sua
desatenção geral às dores do mundo, às quais nunca foi de prestar muito
cuidado.
Não foi por falta de advertência. O
primo Arnaldo não se cansava de vituperar “a América”, apontando, com uma diligência
metódica, os pecadilhos varridos sob o tapete pelo jugo da colonização cultural
americana e pela constante reverência da comunicação social ao capitalismo e à
globalização exportadas pela “América”. (Não havia reunião de família em que o
primo Arnaldo não subisse ao púlpito e agarrasse, através da palavra militante,
em tom enfático, o protagonismo e o enfado dos demais.) O primo Arnaldo era
devoto filiado no partido comunista, militando na linha mais ortodoxa. Ocupava lugar
destacado na concelhia local. Ainda continuava a acreditar que a diabolização
da ex-União Soviética era uma conspiração urdida pelas forças capitalistas. Nunca
deu grande crédito à exaltada catequização do primo Arnaldo.
O mendigo estava meio deitado no chão,
recostado sobre o cotovelo direito, empunhando uma caneca metálica. No seu regaço,
um pequeno cão adormecido, com o consolo do queixo pousado na barriga do
mendigo. O homem era ainda jovem. Se o olhar não o atraiçoava, o mendigo não
teria ainda trinta anos. Como acontece em todos os lugares, o pedinte escolheu lugar
numa das ruas mais movimentadas da cidade, uma rua comercial destinada apenas a
peões. Talvez tivesse mais sorte e conseguisse ativar a bondade dos passeantes
e, ao fim do dia, o pecúlio desse para enganar as dores da subsistência. O carteiro
parou do outro lado da rua. Ficaria ali algum tempo a observar o mendigo, para
ver se a generosidade dos habitantes locais era louvável, para observar os
preparos do mendigo.
Ficou impressionado com o olhar estático
do mendigo, perdido no firmamento. O tempo passava e o pobre homem parecia ter
emoldurado o olhar num qualquer lugar mental, muito distante do lugar físico em
que se encontrava. O olhar mostrava uma tristeza profunda. Uma idade, se fosse
medida através do olhar ausente, sexagenária. Era como se apenas o corpo do
mendigo estivesse sentado contra as arcadas da rua e o resto tivesse sido
obliterado, ou pelas memórias que o homem queria evocar em sua defesa, ou pela
encruzilhada em que metera a sua vida. As pessoas passavam à frente do mendigo,
ele continuava com a caneca metálica esticada à sua frente demandando a
comiseração dos passeantes, o cão permanecia absorto num sono profundo e
imperturbável. Nem uma alma se mostrara disponível para deixar uns trocos na
caneca metálica do mendigo.
Num repente, o cão ergueu a cabeça. Porventura
assustado com um ruído que o carteiro não dera conta, o animal espetou as
orelhas, ficando de atalaia a qualquer sobressalto que pudesse afligir o
mendigo. O cão era o guardião do mendigo, contrariando a ideia de que os
mendigos que se fazem acompanhar de cães se despojam de si mesmos, se preciso
fosse, para alimentarem o animal de companhia. O mendigo continuava impassível.
O olhar vítreo, perdido algures numa dimensão física no enquadramento do seu
olhar, mas mentalmente refugiado numa ausência, não se desviou uma só vez. Quase
podia jurar que o pedinte nem sequer pestanejara. Não parecia incomodado com a
ausente piedade dos passeantes.
Apeteceu-lhe interpelar o mendigo
para saber mais da sua vida. Queria saber de onde era, que partidas severas
sofrera, como sobrevivia, onde dormia, como comia, como seria socorrido se
fosse acometido pela doença, se tinha família ou estava sozinho no mundo. Parou
a tempo. Por respeito ao pobre homem imerso em sua profunda miséria, não o quis
importunar. Seria um injusto egoísmo seu. Em não podendo ajudar o mendigo,
concluiu que era soez aproximar-se para saber a sua história de vida. A demanda
seria uma violência para o mendigo, obrigado a resgatar as contrariedades que o
trouxeram àquele estado, obrigando a levantar fervura a todas as insuportáveis
dores que o minavam por dentro.
Para agravar o estado de coisas, um
manto de melancolia começou a abater-se. Estava condoído com o mendigo,
impressionado com o seu olhar ausente, sinal da ausência de uma alma sob os
despojos de um corpo assim esvaziado de substância. Estava a começar a ficar
incomodado com o seu egoísmo, que reprimiu a tempo. Admitiu que não estava em
condições para ajudar o pedinte. Antes que as coisas ficassem piores, e ele refém
daqueles estados de apoplexia que se autoinfligia com alguma regularidade, e
antes que as dores do mendigo (mesmo sem delas saber o fundamento e os
cambiantes) se contagiassem, decidiu sair daquele lugar, intempestivamente.
Não se coibiu da hermenêutica do episódio.
Tratar-se-ia de uma fuga. Outra vez. Outra fuga. Para piorar o estado de alma,
a tiracolo soergueu-se um genuíno egoísmo, que o incomodava. Admitiu tudo. Despiu
o episódio de significado. Sozinho, não pode ser algoz das dores dos outros. No
rescaldo do episódio, intuiu que não fora fuga o que acontecera. Pela primeira
vez em muito tempo, os olhos ficaram marejados. Para sua surpresa, por causa da
miséria alheia. O que, olhando para trás, era insólito.
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