Metronomy, “Everything Goes
My Way”, in https://www.youtube.com/watch?v=9P2w_hq8YTk
Fiel depositário dos paradoxos: tão
depressa intuía sentir-se bem em Vladivostoque, como era tomado por uma
irreprimível vontade de zarpar para outro lugar. Não seria por acaso que estava
em Vladivostoque: é onde o continente asiático tem orla com o mar que separa de
outro continente. Não seria por acaso: continuava leal à significância dos
sinais que vinham fundear à sua porta e, no caso vertente, ao fim de todo este
tempo deu conta que ter ido parar a Vladivostoque era uma porta que se entreabria
para o continente americano.
Punham-se outras questões prementes:
saltar para o continente americano não era dar continuidade à fuga? Isso não
entrava em conflito com a impressão dominante dos derradeiros dias, a de querer
regressar ao conforto da casa e da terra onde sempre viveu? E se fosse a
imprescindibilidade da fuga, como a podia cautelar, agora que sentia estar a
fugir de coisa nenhuma? Os derradeiros dias tinham sido profícuos para a aceitação
das suas fragilidades. Ele era como era, ponto final. Não podia continuar na
demência de se fustigar constantemente ao dar conta de certos episódios de que
se envergonhava, ou de certos aspetos da personalidade de que gostava de se
arrepender, não fossem eles genéticos e, por isso, difíceis de modificar. Tudo se
compunha no sentido de liquidar a fuga. Dir-se-ia que estava preparado para
viver com a pessoa que era. Assim sendo, como explicar a pulsão irrefreável de
sulcar o Pacífico à procura do continente americano?
Pelo meio, houve um episódio, sem
grandes consequências, mas que noutra altura podia ter desarranjado o pensamento.
Um dia, teve de ir ao equivalente a uma repartição de finanças. (Para ficar
legal do ponto de vista dos impostos, pois recebia um salário e logo de uma
entidade pública.) Estava na fila de espera quando apareceu a rapariga que o
servira uns dias antes no restaurante, quando uma súbita vontade por um lauto
manjar o assaltou. Ele, que não costuma ser atento a estas coisas (dos flirts e dos olhares trocados que podem
levar a demanda longe), desconfiou, na altura, da cortesia assídua da rapariga.
Ignorou: convenceu-se, já há tempo suficiente, que não estava em preparos para entregas
amorosas. Por via das dúvidas, resolveu que não iria mais àquele restaurante. Só
que não domina as coincidências. (Nem, em abono da verdade, atribui consequências
às coincidências, quando elas acontecem. O que era outro paradoxo irremediável,
pois aos sinais que virem ter à sua porta conferia uma substantiva importância.)
A rapariga cumprimentou-o, com alguma
efusividade, penhora de um olhar resplandecente. (E não era por causa dos grandes
olhos azuis-quase-água que saltavam do resto do rosto.) No seu inglês esforçado,
interpelou-o:
-
Estava a contar contigo no restaurante. Mas nunca mais apareceste. Não gostaste
da comida?
-
Nada disso. Estava tudo ótimo. A comida, confesso, foi a melhor refeição que
tive desde que cheguei a Vladivostoque. (Sem admitir, contudo, que não andara à procura de
experiências gastronómicas, mas apenas do que era preciso para saciar a
necessidade de comer.) E tu foste
atenciosa comigo... – concluiu.
-
Então, por que não voltaste ao restaurante? Sabes, este é um dos melhores
restaurantes de Vladivostoque.
-
Não passou assim tanto tempo. Tenho andado muito ocupado. (O que era mentira.) Podes dizer que ainda não voltei ao
restaurante. O “ainda” faz toda a diferença. (Mentindo outra vez, pois
tinha decidido não voltar ao restaurante, por causa da postura insinuante da
rapariga.)
-
Estás há muito tempo à espera de ser atendido?
-
Meia hora – atirou,
já sem disfarçar algum desinteresse pela conversa, pois não fora do seu agrado
a insistência, algo intrusiva, da rapariga.
-
Estás aqui para...
-...
tratar dos meus impostos! –
interrompeu, sem esconder algum desdém, disfarçado pelo cinismo que emprestou à
resposta (todavia, não alcançado pela rapariga).
-
Eu estou à espera do meu pai. Ele vai fazer uma doação a meu favor. De acordo
com as leis da Rússia, as doações têm de ser participadas às autoridades dos
impostos, para depois cobrarem uma percentagem. Só depois de pago esse imposto é
que a doação se concretiza.
O carteiro não escondeu o enfado,
pois direito fiscal, e muito menos o russo, era tema do seu interesse. A
rapariga continuou a dar explicações da sua vida e da sua vinda ao equivalente à
repartição das finanças:
-
Com o dinheiro que vou receber, deixarei de trabalhar no restaurante. Vou abrir
o meu próprio restaurante. Andei a visitar uns lugares e tenho quase contrato
fechado com os donos de um sítio mesmo de frente para a baía.
Foi então que ele percebeu que a
rapariga estava a tentar impressioná-lo através do dote apreciável que o
progenitor estava disposto a deixar-lhe em vida. Disse à rapariga, no módico de
cortesia e de educação:
-
Fico contente por ti. Desejo que sejas feliz no teu negócio.
-
Quando sairmos daqui, queres que te mostre o lugar onde vai ser o restaurante?
-
Se calhar não saímos ao mesmo tempo. Estamos em filas para departamentos
diferentes. Parece que o teu departamento tem menos gente à espera.
-
Se for preciso, eu espero. Trato das coisas com o meu pai, despeço-me dele e
levo-te ao lugar.
Ele não estava interessado. Não queria
partilhar aquele momento de felicidade da rapariga – e se essa felicidade
irradiava de todos os poros da sua pele morena! Sabia que não podia ser o
alicerce da felicidade que a rapariga merecia. Não queria saber dos planos para
o negócio; não por acaso, nunca quis deixar de ser funcionário público e tinha
um certo preconceito contra a iniciativa privada.
-
Vem aí o meu pai. (Informou,
ao mesmo tempo que dava um pulo na cadeira.)
O carteiro olhou na direção da
rapariga. O homem que ela beijara, o seu pai, era o perito em dores da alma. Ficou
estarrecido. No momento, apetecia-lhe fugir. Não queria ser confrontado com o
perito por ter faltado à consulta. Desistiu da intenção: tinha de ser homem de
pleno corpo. E não daria justificações, se fosse interpelado. Até podia ser útil
a sobranceria para cima do perito, pois a rapariga deixaria de o sondar.
A rapariga quis apresentar o carteiro
ao pai. Estenderam a mão e cumprimentaram-se. O carteiro manteve-se firme. O
perito olhou-o nos olhos e não o reconheceu. (Ou fez de conta que não reconheceu
– mas isso não vinha ao caso; até podia ser que, entre tantos pacientes, não se
lembrasse da cara do carteiro. Mas não vinha ao caso.) Afinal, o perito haveria
de ter algum préstimo: tanto insistiu que a rapariga saísse com ele do
equivalente à repartição de finanças, que ela não voltou a mencionar a ideia de
levar o carteiro até ao lugar que haveria de ser o seu restaurante. “Nunca mais se haveriam de ver”, ciciou,
em forma de alívio, o carteiro.
Resoluto a deixar Vladivostoque, chegou
a uma conclusão: não estando já em fuga, queria deitar os olhos pelo que o
mundo tinha para dar. Era a vez do continente americano. Ao fim deste tempo
todo, percebeu que era um nómada com sede de conhecimento de lugares
diferentes.
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