The Durutti Column, “Sketch
for Winter”, in https://www.youtube.com/watch?v=v7SCUPwpUnA
A vergonha cobriu-o por inteiro. Lembrou-se
de uma expressão popular, pelo menos de uso corrente na sua terra, e que
retratava o opróbrio que julgou ter caído sobre si: “entrou à leão e saiu tosquiado”. Quis fazer de conta que era
mendigo, cansou-se por ter percebido a indignidade da simulação, em jeito de
arrependimento quis deixar o pé-de-meia das esmolas angariadas ao mendigo que
fora mote para a encenação, o mendigo quis trocar duas palavras com ele e, no
fim do ato, até o mendigo era faz-de-conta. Estava furioso. A começar, com a
torpeza que o levou à frivolidade de se fingir pedinte, pois não é apenas
porque lhes apetece que os necessitados se expõem à humilhação da mendicidade. Depois,
estava furioso porque quem fora inspiração para este ardil era tão mendigo
quanto ele, ou seja, não era. “É bem
feito!” – exclamou, zurzindo a ira contra si mesmo, enquanto caminhava
apressadamente sem saber para onde.
(Quando deixou o investigador-mendigo
a falar sozinho, era intenção esconder-se em casa, e por uma temporada
demorada, para absorver os efeitos pungentes do ardil de que fora vítima e que,
no fim de contas, o levara a ser fautor de um ardil de idêntico jaez. A páginas
tantas, tão iracundo se achava, os pensamentos revirando-se numa espiral caótica,
estava desorientado. Achou-se numa rua que sondava os subúrbios de Vancouver. Tinha
a impressão que estava perdido.)
Já não sabia o que o apoquentava
mais: se a aleivosia que montara ao fazer-se passar por pedinte, se ter sido
enganado pelo mendigo que servira de mote para esta encenação. Convenceu-se que
não adiantava achar o fio à meada na encruzilhada. Era uma perda de tempo. Era
atribuir importância ao insignificante. Talvez estivesse entretido com uma
demanda que, no fim da linha, tinha o predicado de perdoar o soez fingimento. Não
importava. Não importava, sequer, apontar as culpas ao outro homem,
investigador numa universidade qualquer e, portanto, pessoa bem-posta na sociedade,
endossando-lhe a responsabilidade do seu fingimento. Admitiu que se não fosse
aquele homem a servir de inspiração para o ato pérfido de que fora autor, seria
outro qualquer mendigo – muito certamente, um mendigo a sério. Ainda se
convenceu de outro predicamento: era
melhor voltar à sua forma original, aquela que fazia de conta que as dores da
miséria não eram da sua conta. Se não tivesse aberto uma exceção no comportamento
habitual e não tivesse feito esta incursão pelas dores da miséria, não teria
acontecido o ato de que se arrependia compungidamente.
Algum tempo depois, deslaçou o equívoco
da desorientação que o levara até a ruas vazias, já quase fora de Vancouver. De
regresso a casa, já noite, ficou atónito: o mendigo faz-de-conta, o
investigador que foi tão soez como ele ao fingir-se mendigo, estava à porta de
casa. Antes que fosse visto, parou e escondeu-se. Só podia ser uma coincidência.
Não acreditava que o investigador-mendigo estivesse à sua espera e logo à porta
do sítio onde morava. Mas, depois, caiu em contradição, levado pelo rosto das
aparências sem efeito: aquele bairro era habitado por gente remediada, na
melhor das hipóteses, operários e mulheres de limpeza de variadas etnias, gente
certamente imigrada no Canadá. Não era provável que o investigador-mendigo
vivesse nas imediações e, por acaso, desse por si a pensar na vida mesmo à
porta da casa do carteiro-por-um-dia-mendigo. Voltava ao dantes: para ser
investigador, é assalariado de uma universidade, ou de uma organização
governamental que distribui generosas bolsas para haver quem se entretenha a
fazer investigação na maior parte das vezes sem utilidade para a sociedade. Aquele
homem não vive à míngua, como os habitantes do bairro. Dava por assente que o
investigador-mendigo não vivia ali.
Não quis esperar mais tempo, até
porque o investigador-mendigo, ainda em pose em conformidade com o estatuto que
assumira em fingimento, continuava inerte e não fazia tenção de sair dali para
fora. Avançou. O investigador-mendigo despertou da letargia, própria de quem
estava há muito tempo à espera de algo, e dirigiu-se ao carteiro:
-
Até que enfim! Pensei que tivesses fugido, arqueado sob o peso da vergonha.
-
Olha quem fala...
-
Tens razão, tens razão.
-
Não nos desviemos do que interessa. E o que interessa, nesta altura, é como
sabes onde vivo.
-
Ontem, quando me observavas demoradamente, não tinhas o exclusivo da observação.
Ainda que não tenhas notado, eu também te observava. O que me despertou
curiosidade foi por que me observavas. Quando vieste embora, segui-te à distância
e fiquei a saber a tua morada.
-
Estou perplexo. Será que podemos considerar a tua atitude uma forma de assédio?
-
Não digas isso. Não ponhas as coisas nesses termos.
-
Essa agora! Segues-me à distância e à socapa para saber onde moro. Agora
desconfio que nem investigador serás, mas funcionário dos serviços secretos. Que
outra palavra, se não assédio, podes usar para descrever o teu comportamento?
-
Tens razão. Isto é: não tens toda a razão: eu não faço parte dos serviços
secretos. Sou mesmo investigador, trabalho...
-
...Não quero saber onde trabalhas. Não quero saber mais nada sobre ti. Exijo
que saias daqui!
-
Estás indisposto por o meu fingimento ter dado origem a um comportamento de que
arrependes amargamente. Vá, atira à vontade as culpas para cima de mim.
-
O demais não interessa. A tua perseguição foi doentia. Foi muito pior do que o
ato soez que pratiquei. E nem me interessa ter sido ludibriado por um falso
mendigo. Tudo isso fica reduzido a nada perante a perseguição que me moveste. Não
quero mais conversa.
Dito isto, o carteiro irrompeu entre
o investigador-mendigo e a porta de casa, empurrando-o com um movimento brusco,
seco. Ainda ouviu um balbuciar indistinto nas suas costas à medida que a chave
abria a porta de casa e depois bateu a porta, mal-educadamente e com estrépito,
na cara do investigador-mendigo.
Ainda estava mais furioso do que
antes. Vancouver não começava bem. Antes que perdesse as rédeas e que viesse a
saber coisas que não lhe interessava saber (as motivações do
investigador-mendigo), decidiu que chegara o tempo de encontrar outro lugar.
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