20.4.17

Correio atrasado (25)


The Durutti Column, “Sketch for Winter”, in https://www.youtube.com/watch?v=v7SCUPwpUnA    
A vergonha cobriu-o por inteiro. Lembrou-se de uma expressão popular, pelo menos de uso corrente na sua terra, e que retratava o opróbrio que julgou ter caído sobre si: “entrou à leão e saiu tosquiado”. Quis fazer de conta que era mendigo, cansou-se por ter percebido a indignidade da simulação, em jeito de arrependimento quis deixar o pé-de-meia das esmolas angariadas ao mendigo que fora mote para a encenação, o mendigo quis trocar duas palavras com ele e, no fim do ato, até o mendigo era faz-de-conta. Estava furioso. A começar, com a torpeza que o levou à frivolidade de se fingir pedinte, pois não é apenas porque lhes apetece que os necessitados se expõem à humilhação da mendicidade. Depois, estava furioso porque quem fora inspiração para este ardil era tão mendigo quanto ele, ou seja, não era. “É bem feito!” – exclamou, zurzindo a ira contra si mesmo, enquanto caminhava apressadamente sem saber para onde.
(Quando deixou o investigador-mendigo a falar sozinho, era intenção esconder-se em casa, e por uma temporada demorada, para absorver os efeitos pungentes do ardil de que fora vítima e que, no fim de contas, o levara a ser fautor de um ardil de idêntico jaez. A páginas tantas, tão iracundo se achava, os pensamentos revirando-se numa espiral caótica, estava desorientado. Achou-se numa rua que sondava os subúrbios de Vancouver. Tinha a impressão que estava perdido.)
Já não sabia o que o apoquentava mais: se a aleivosia que montara ao fazer-se passar por pedinte, se ter sido enganado pelo mendigo que servira de mote para esta encenação. Convenceu-se que não adiantava achar o fio à meada na encruzilhada. Era uma perda de tempo. Era atribuir importância ao insignificante. Talvez estivesse entretido com uma demanda que, no fim da linha, tinha o predicado de perdoar o soez fingimento. Não importava. Não importava, sequer, apontar as culpas ao outro homem, investigador numa universidade qualquer e, portanto, pessoa bem-posta na sociedade, endossando-lhe a responsabilidade do seu fingimento. Admitiu que se não fosse aquele homem a servir de inspiração para o ato pérfido de que fora autor, seria outro qualquer mendigo – muito certamente, um mendigo a sério. Ainda se convenceu de outro predicamento:  era melhor voltar à sua forma original, aquela que fazia de conta que as dores da miséria não eram da sua conta. Se não tivesse aberto uma exceção no comportamento habitual e não tivesse feito esta incursão pelas dores da miséria, não teria acontecido o ato de que se arrependia compungidamente.
Algum tempo depois, deslaçou o equívoco da desorientação que o levara até a ruas vazias, já quase fora de Vancouver. De regresso a casa, já noite, ficou atónito: o mendigo faz-de-conta, o investigador que foi tão soez como ele ao fingir-se mendigo, estava à porta de casa. Antes que fosse visto, parou e escondeu-se. Só podia ser uma coincidência. Não acreditava que o investigador-mendigo estivesse à sua espera e logo à porta do sítio onde morava. Mas, depois, caiu em contradição, levado pelo rosto das aparências sem efeito: aquele bairro era habitado por gente remediada, na melhor das hipóteses, operários e mulheres de limpeza de variadas etnias, gente certamente imigrada no Canadá. Não era provável que o investigador-mendigo vivesse nas imediações e, por acaso, desse por si a pensar na vida mesmo à porta da casa do carteiro-por-um-dia-mendigo. Voltava ao dantes: para ser investigador, é assalariado de uma universidade, ou de uma organização governamental que distribui generosas bolsas para haver quem se entretenha a fazer investigação na maior parte das vezes sem utilidade para a sociedade. Aquele homem não vive à míngua, como os habitantes do bairro. Dava por assente que o investigador-mendigo não vivia ali.
Não quis esperar mais tempo, até porque o investigador-mendigo, ainda em pose em conformidade com o estatuto que assumira em fingimento, continuava inerte e não fazia tenção de sair dali para fora. Avançou. O investigador-mendigo despertou da letargia, própria de quem estava há muito tempo à espera de algo, e dirigiu-se ao carteiro:
- Até que enfim! Pensei que tivesses fugido, arqueado sob o peso da vergonha.
- Olha quem fala...
- Tens razão, tens razão.
- Não nos desviemos do que interessa. E o que interessa, nesta altura, é como sabes onde vivo.
- Ontem, quando me observavas demoradamente, não tinhas o exclusivo da observação. Ainda que não tenhas notado, eu também te observava. O que me despertou curiosidade foi por que me observavas. Quando vieste embora, segui-te à distância e fiquei a saber a tua morada.
- Estou perplexo. Será que podemos considerar a tua atitude uma forma de assédio?
- Não digas isso. Não ponhas as coisas nesses termos.
- Essa agora! Segues-me à distância e à socapa para saber onde moro. Agora desconfio que nem investigador serás, mas funcionário dos serviços secretos. Que outra palavra, se não assédio, podes usar para descrever o teu comportamento?
- Tens razão. Isto é: não tens toda a razão: eu não faço parte dos serviços secretos. Sou mesmo investigador, trabalho...
- ...Não quero saber onde trabalhas. Não quero saber mais nada sobre ti. Exijo que saias daqui!
- Estás indisposto por o meu fingimento ter dado origem a um comportamento de que arrependes amargamente. Vá, atira à vontade as culpas para cima de mim.
- O demais não interessa. A tua perseguição foi doentia. Foi muito pior do que o ato soez que pratiquei. E nem me interessa ter sido ludibriado por um falso mendigo. Tudo isso fica reduzido a nada perante a perseguição que me moveste. Não quero mais conversa.
Dito isto, o carteiro irrompeu entre o investigador-mendigo e a porta de casa, empurrando-o com um movimento brusco, seco. Ainda ouviu um balbuciar indistinto nas suas costas à medida que a chave abria a porta de casa e depois bateu a porta, mal-educadamente e com estrépito, na cara do investigador-mendigo.
Ainda estava mais furioso do que antes. Vancouver não começava bem. Antes que perdesse as rédeas e que viesse a saber coisas que não lhe interessava saber (as motivações do investigador-mendigo), decidiu que chegara o tempo de encontrar outro lugar.

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