Porno for Pyros, “Pets”, in
https://www.youtube.com/watch?v=HE3OuHukrmQ
Enquanto esperava por vez para ser
atendido no quiosque, no outro lado da avenida estava um palhaço. Era um palhaço
exuberante que se esforçava por encantar um punhado de crianças que chegaram
pela mão dos pais ou dos avós. O palhaço estava no lado certo da avenida. Nunca
gostou de palhaços, nem quando era a idade certa para os apreciar. Ao contrário
dos outros meninos da escola, nunca deu uso aos bilhetes do circo que o
presidente da câmara, em ato de desinteressada generosidade, oferecia às
escolas. Era a sua vez de subempreitar a generosidade: os bilhetes a que tinha
direito (três) eram redistribuídos pelos amigos mais próximos que tinham irmãos
e não tinham acesso à graça do edil.
À medida que cresceu, tinha periódicos
pesadelos em que palhaços faziam a vez de entidades malévolas. Não sabia
explicar por que razão os palhaços personificavam demónios nos seus pesadelos
(rivalizando com velhos de olhos vazados, arqueados e de mão estendida,
crocodilos em deambulações por selvas onde nunca fora e a professora de
geografia que era um hino inteiro à fealdade). Nunca dera importância à
simbologia do pesadelo. Tirando os pesadelos, nenhum palhaço de carne e osso
lhe fizera mal. Porventura eram medos recalcados: uma indisposição com a exuberância
dos palhaços, a indumentária risível, a maneira patética de se dirigirem ao público-alvo,
como se fosse imperativo infantilizar uma audiência que, à partida, medra numa
infantilidade que dispensa exacerbação.
Apostava que os palhaços eram máscaras,
em sentido literal. Precisavam de uma máscara para ocultar um rosto decerto
medonho, para tirarem um fundo mau das baias da transparência. Os palhaços eram
criações de gente má com o propósito de arregimentar criancinhas ingénuas para
um porvir em que seriam personagens malvadas, em devido tempo adestradas a
furtar os rudimentos de bondade que podiam transfigurar o mundo. Os palhaços seriam
a síntese de toda a maldade que povoa o mundo, a sua quintessência.
Ainda à espera de vez no quiosque, e
passando o tempo abraçado a estes pensamentos especulativos, não percebeu que o
palhaço atravessou a avenida trazendo a tiracolo a trupe de circunstância. Quando
reparou, o palhaço estava à sua ilharga. Reparou por causa do burburinho
infantil, que escondia a figura do palhaço de cócoras a distribuir balões
cheios, enquanto olhava fixamente para o carteiro nómada.
(Ou era apenas impressão sua: de
tanto medo irracional dos palhaços, e em estando um palhaço tão perto dele,
autoconvenceu-se que o palhaço tinha fixado o olhar em si e que preparava uma
investida inamistosa. Quis-se convencer que esta era a interpretação correta. Não
fazia sentido o palhaço distribuir balões enquanto olhava sem pestanejar para
si, num olhar hediondo.)
Se tivesse coragem para berrar com os
pulmões bem abertos, diria, em sonora advertência, que o palhaço distribuía balões
que escondiam estupefacientes no interior. Só para boicotar a ação do palhaço
e, mesmo sendo inverdadeira a acusação, só para encomendar o palhaço a outro
destino, o mais longe possível. Mas não tinha essa coragem. Devia ter; ato contínuo,
crescentemente incomodado com a presença próxima do palhaço, sentiu suores
frios a percorrer o corpo. Estando convencido que o palhaço não tirava os olhos
de si, instalou-se um dilema que tinha de resolver com brevidade: ou se
superava e remetia a presença do palhaço à indiferença, ou desistia da espera e
voltava ao quiosque noutra altura. Embebido nesta indecisão, sentou alguém a puxar
um dos braços com um gesto suave, mas demorado. Era o palhaço, naquela
carantonha medonha simulando um sorriso trapaceiro de orelha a orelha, acenando
com a cabeça como se estivesse a aliciá-lo para uma atividade pecaminosa,
estendendo um balão em sua direção. Fez de conta que não era consigo. O palhaço
insistiu, empurrando outra vez a mão contra o seu braço, insistindo para que
aceitasse o balão. “Que azar –
lobrigou –, o palhaço tinha logo de teimar
logo com ele!”
Conseguiu derrotar o medo (e a
indecisão de que estava refém) e recolheu o balão. Friamente. O palhaço acenou
outra vez, convidando a um sorriso em forma de agradecimento. O carteiro
esboçou um sorriso, a muito custo. Admitiu: quem estivesse de fora notaria que
era um sorriso forçado, amarelo, sem préstimo, oportunista. O palhaço não se
importou. Desviou os olhos na direção das sobrancelhas, em sinal de devolução
do agradecimento. E partiu.
E ele sentiu que acabara de receber
uma lição de cátedra.
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