The Chemical Brothers, “Galvanize”,
in https://www.youtube.com/watch?v=Xu3FTEmN-eg
Não sabia se havia de confiar no
cargueiro de que seria embarcadiço daí a uns dias. Quando subiu ao cargueiro
para falar com o comandante (pedira para saber o que era preciso para lhe ser
outorgada autorização para viajar até Vancouver, o destino do cargueiro), notou
que o casco tinha a tinta a cair aos pedaços e que os pedaços que tinham caído deixavam
abundante ferrugem à mostra. Ele não percebia nada de marinha mercante nem das
embarcações. Para saber onde era estibordo e bombordo, tinha de ir ao dicionário.
À míngua de dinheiro para apanhar um avião que o levasse até a uma cidade no
continente americano (tanto fazia o Canadá ou os Estados Unidos), teve de pedir
para viajar num barco.
O comandante – tinha aparência eslava
– recebeu-o com uma cortesia não aguardada, pois dos homens do mar guarda uma
memória, porventura sem substanciação, que são homens rudes, da mesma rudeza do
mar que têm de vencer quando o percorrem de porto em porto. O comandante
autorizou-o a partir na próxima viagem. Com uma condição: tinha de pagar o
favor com trabalho a bordo. Perguntou o comandante quais eram as suas perícias
profissionais. Em ouvindo o breve curriculum do carteiro, o comandante soube
que não podia exigir que ajudasse os marinheiros que lidam com a maquinaria
pesada. Estava decidido: ajudaria na cozinha. O comandante decidiu antes de
perguntar se o carteiro tinha algum conhecimento das artes culinárias. Foi o
carteiro que, honrando a honestidade intelectual, avisou que a gastronomia não
era o seu forte. Mesmo assim, estava decidido. Dava jeito mais um par de braços
na cozinha do cargueiro, pois um dos ajudantes tinha abandonado a embarcação,
sem pré-aviso, no porto de onde tinha partido da última vez.
O carteiro não ficou perplexo com a
contrapartida que lhe foi pedida. Sabia pouco de cozinhados, mas o seu papel
era de dar uma ajuda ao cozinheiro-chefe. Não seria difícil. Ele estava
inquieto porque ficou com a impressão que o cargueiro envelhecido e decadente
podia não suportar uma tempestade na travessia entre Vladivostoque e Vancouver.
Informou-se das condições do mar na rota do cargueiro. Naquela altura do ano, era
muito provável que as tempestades sobressaltassem o mar. Na noite em véspera de
embarcar, foi ao porto e perguntou a um estivador, que fazia uma pausa para
fumar um cigarro, se o cargueiro era seguro. O estivador, desconfiado com a
abordagem, pediu as credenciais do carteiro. Ele mostrou o salvo-conduto em sua
posse, confirmando ser embarcadiço daquele cargueiro. O estivador cocou a
cabeça e perguntou:
-
Como pode ter dúvidas sobre a confiança deste cargueiro se faz parte da
tripulação?
-
Vou embarcar amanhã. Vai ser a primeira viagem. E como sei pouco de marinha
mercante, fiquei inquieto ao ver tanta ferrugem à mostra no casco do navio.
-
Ah, é por isso! Não se incomode. Se fizer uma vistoria aos navios ancorados nos
cais, verá que todos têm muita ferrugem à mostra. Mas a ferrugem não é
estrutural. É apenas uma camada à superfície. Não se esqueça que os navios
passam uma vida inteira em contacto com o mar. E o mar é uma água muito
corrosiva. A ferrugem à mostra não compromete a segurança dos navios. Além
disso, há vistorias assíduas para ver se os navios continuam em condições de
navegar. É como nos aviões: aqui também não se facilita com as condições de
segurança.
Nem assim se tranquilizou. Teve de
reconhecer o que não queria: nunca fora da sua preferência andar dentro de
barcos. Nunca o fizera num oceano, um espaço tão vasto de água, dias a fio sem
deitar os olhos num pedaço de terra. Das vezes anteriores que sentira a água
como chão (uma albufeira, um lago pequeno), sentiu medo. Esta era a sua
vulnerabilidade. A ferrugem à mostra no cargueiro era um pretexto para não incomodar
medos antigos. Desta vez, tinha de os pôr de lado. A alternativa (à falta de
dinheiro para apanhar um avião) era ficar em Vladivostoque. Não era
alternativa.
Foram nove dias de viagem, com duas
tempestades medonhas pelo caminho. Enjoou. Em certas alturas, acabou por lhe
ser pedido que ajudasse os marinheiros em tarefas exigidas pela maquinaria
pesada da embarcação. Dormiu pouco todas as noites; e não era pela torrente de
pensamentos que desassossegassem o sono: não se acostumou à coreografia
permanente do mar, aquele ir a cima e depois a baixo, às vezes com muita
amplitude, que não era caução para o sono. Em noites de insónia, fez companhia
ao comandante – o homem simpatizara com o carteiro. Fez um interregno na recusa
dos vícios, pois o comandante era conhecedor de uísque e servia-se de doses
abundantes antes de passar os olhos pelo sono um par de horas (não mais). Ele e
o comandante trocaram inconfidências. Foi tanta a cumplicidade que o comandante
o tentou convencer a integrar a tripulação a tempo inteiro. Ele agradeceu a
confiança, mas recusou o convite. Não era seu propósito tornar-se marinheiro. Quando
o comandante adivinhou que ele tinha corporizado a pele de viajante, ainda
tentou jogar o trunfo dos inúmeros lugares diferentes que o cargueiro visita,
pois não era cargueiro de rotas certas, rotineiras. Nem assim o carteiro se
deixou convencer. O comandante não levaria a mal a sua franqueza: o cargueiro
foi a porta de entrada no continente americano. Estes nove dias de viagem não
chegaram para desfazer o medo do mar.
No alvorecer do décimo dia, avistou
no fio do horizonte uma silhueta de terra. Era a América que se tornava um
sonho visível. Apressou-se a voltar ao camarote, para arrumar as suas coisas e logo
a seguir voltar para o convés. Queria que a terra americana se embebesse no
olhar.
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