PJ Harvey, “Down By the
Water”, in https://www.youtube.com/watch?v=lbq4G1TjKYg
Estava hospedado perto do aeroporto. Julgou
que ia ser difícil descansar nas horas previstas para o descanso. Os aviões
aterravam e descolavam a toda a hora – aquele era um dos aeroportos mais
movimentados. Habituou-se depressa. Não era o silvo tonitruante dos aviões, ora
a aterrarem, ora a levantarem voo (dependendo dos ventos dominantes), que estorvava
o sono quando era hora do sono. Teve a sorte de encontrar um lugar para viver
que tinha janelas duplas, isolando o ruído que fazia lá fora – interiorizou,
sem antes ter sabido que todas as casas em Vancouver eram feitas de janelas
duplas. E não era para as pessoas não saberem do ruído exterior; era para não
serem apoquentadas pelo frio que fazia no inverno.
Nesta noite, foi importunado por uma
insónia. Já fazia algum tempo que as insónias não subiam à cena. Assim era desde
as dúvidas existenciais que o assaltaram em Vladivostoque, na véspera da
consulta com o perito em dores de alma, a que acabou por faltar. No cargueiro,
nem as noites com mar tempestuoso foram suficientes para desassossegar o sono,
tamanho o cansaço com que cada final de jornada era recebido. Esta era, pois,
noite de insónia. Não cavou fundo para tentar saber de onde procedia a insónia.
Mal percebeu que não conseguia encontrar explicação para a ausência do sono, dirigiu
a atenção para alhures que pudesse ter mais peso.
O olhar debateu-se no trânsito de aviões.
À frente dos olhos, conseguia ver o corredor aéreo destinado à aterragem dos
aviões. Mandava o vento de feição que essa fosse a orientação decidida pelos
controladores aéreos. O vento que não estava macio, a crer na coreografia da
folhagem das árvores, que ondulavam ora num sentido, ora no outro. Parecia que,
afinal de contas, não havia vento dominante. Estava errático. Os aviões
ressentiam-se, com descidas bailarinas até à pista de aterragem, debatendo-se
com a turbulência errática, com aterragens brutas, às vezes aterragens à
segunda, pois os ventos desajeitados descompunham o avião e só com o segundo
contacto com a pista a aterragem se consumava.
Um avião, em plena aproximação ao
solo, hesitou e voltou a ganhar altura. Foi então que se lembrou de um amigo de
longa data, admirador das coisas da aviação civil, lhe ter contado que os aviões
às vezes “borregam” – e que borregar significa o abortar de uma aterragem
porque os pilotos sentem que, no derradeiro instante, não é seguro pousar o avião.
Apesar de se ter lembrado do detalhe técnico, os seus olhos empreenderam uma
digressão metafórica pelo “borregar” do avião. Sondou, pela via láctea das
possibilidades sem hipótese de escrutínio (porque do domínio da especulação se
tratava), quantas vidas eram a imagem viva de um borregar de intenções.
À primeira vista, as hesitações que
conduzem à inação pertencem ao legado das coisas inviáveis. Delas se pode dizer
que resumem um malogro. Com a agravante do retrocesso, fator determinante do
malogro, ser ditado no último momento antes da decisão final que deveria
conduzir ao resultado esperado. Um avião a borregar, ou uma pessoa a,
covardemente, retrair-se de uma intenção, são o espelho da derrota. Só contam
as decisões que dão em ações. Um recuo é motivo de censura – de autocensura.
Admitiu, após algum demorado
pensamento, que as coisas raras vezes são como aparecem em revelação à primeira
vista. Teve de amadurecer a hermenêutica da metáfora do avião a “borregar”. O que
lhe tinham ensinado, é que um avião não se faz à pista se não houver condições
para aterrar em segurança. Se um piloto interrompe a aterragem, metendo os
motores a fundo para ganhar a velocidade que as leis da física exigem para o
avião voltar a ganhar altitude, é porque ajuíza que não pode arriscar a
aterragem sob pena de ser carrasco dos passageiros embarcados. Quando um avião “borrega”,
não se pode considerar que de uma inércia se trata. É ao contrário: a não decisão
de colocar o avião no chão é a decisão de o salvar de uma possível aterragem
catastrófica. É uma decisão. A mais ajuizada de todas, de acordo com o critério
(timorato ou não) do piloto que comanda o avião, para não transformar a pista
de aterragem num crematório de corpos.
A metáfora do avião a “borregar” era
um retrato muito aproximado do que sentira ser o seu percurso de vida até àquele
dia em Vancouver. Até a perceber por que “borregam” aviões e por que há gente
que recua em vésperas de uma decisão. Com uma diferença de perspetiva: dantes,
em retrospetiva, julgava-se um perito em aterragens adiadas. Agora, a lente
usada caucionava uma outra dimensão das coisas em seu agitar pretérito. Se bem
estimava no plano dos juízos as vezes em que tivera de “borregar”, não se
arrependia uma única vez.
Deu um grande salto em frente no
apalavrar das dúvidas sem resposta que o assoberbavam. A viagem empreendida
começava a revelar seus frutos. Antes de cair no sono, ainda teve tempo para
notar que já não se referia, nestas deambulações heurísticas, a “fuga”. A palavra
“viagem”, em substituição de “fuga”, era peça do tremendo salto em frente que
dera depois de uma noite a ver os aviões em aflitas aproximações à aterragem.
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