Radiohead, “Paranoid
Android” (live at Coachella 2017), in https://www.youtube.com/watch?v=Np-xhDTS7Gg
A viagem interminável. O autocarro rasgava
os quilómetros (em estando no continente americano, valem as milhas) e a
paisagem parecia ter parado. Era uma pradaria sem fim. A monotonia a que os
passageiros tinham de se render, pela paciência ou pelo sono. Às vezes, fechava
os olhos a querer suplicar o sono que, teimoso, continuava ausente.
Não era capaz de admitir, mas era
possível que o derradeiro pesadelo, o incitamento para deixar Vancouver no armário
das breves memórias, pesasse no embaraço do sono. Uma parte importante de si, a
que das profundezas dita o demais sem possibilidade de ser a sua vontade (a que
ele julga dominar) a meter rédeas, à cautela impunha estorvos no sono. Era preferível
que o carteiro andasse mortificado pelo cansaço, próprio de quem era consumido
por sucessivas insónias, do que andar sobressaltado por todos os fantasmas que subiram
a palco no derradeiro pesadelo. A parte de si que era domínio da vontade não
atribuíra grande importância ao pesadelo, pois o que veio a seguir foi um dia
apaziguado. O mal era a parte de si que a vontade não comandava e que instituíra
um cordão sanitário que impedia o sono.
Apeteceu-lhe ter um padre sentado no
banco do lado. (Em vez da mulher com traços índios que mergulhou no sono e
estava há horas a fio recolhida nesta hibernação.) O padre faria as vezes de
confessor. Não que fosse admirador da função, pois nem sequer era dado à
religiosidade. Talvez por isso mesmo a confissão fosse mais relevante. Não seria
como alguns crentes que se dirigem ao confessionário como um ritual obrigatório
de expiação de pecados, sem outra finalidade se não obter a absolvição para,
quando for necessário, voltarem a decair no pecado de que se haverão de
arrepender. No seu caso, a confissão seria atípica. Seria uma conversa com alguém
que tem o tirocínio da observação dos males que afligem as almas alheias; não
tinha o propósito da absolvição. Pôs-se a pensar no assunto e depressa se animou
com a presença da mulher com traços índios no banco do lado. Como pode um
sacerdote ter a pretensão de meter mão nas dores que apoquentam os outros, se
ele é feito da mesma massa e também é assaltado pelas suas próprias dores da
alma? Estes julgamentos não se compadecem com a ilusão da imparcialidade.
Não podia ser um padre a pessoa
esperada para a conversa de que tinha necessidade. Podia ser o condutor do
autocarro. Um homem de meia idade, irradiando um ar confiável (ou não fosse a
sua profissão tão exigente por ter nas mãos tantas vidas). Se o embaraço das
aparências não o atraiçoasse, jurava a pés juntos que o condutor do autocarro
podia ouvi-lo. Mas as paragens assíduas do autocarro eram sempre curtas. Não haveria
tempo para pôr a conversa em dia – e, de repente, sentiu que nada augurava que
o condutor do autocarro estivesse interessado em ser o seu psicólogo
improvisado, até porque apostava que as regras da empresa de transporte rodoviário
teriam uma alínea qualquer a prevenir o contacto entre os condutores dos
autocarros e os passageiros.
Terceira tentativa: descontando a
mulher com traços índios que, tudo indicava, teria tomado dose cavalar de um barbitúrico
para estar refém do sono dir-se-ia perpétuo, qualquer outro passageiro podia
ser a pessoa com quem podia meter conversa. Levantou-se para esticar as pernas.
Olhou para a frente e para trás, observando, um a um, os demais passageiros, companheiros
da demorada viagem. Ninguém saltou à vista. (Tirando uma mulher jovem, sentada
três filas atrás, que vestia uma camisola decotada que dava mais visibilidade
aos avantajados seios – mas essa passageira saltou à vista por motivos
diferentes.) Continuou de pé, ensaiando uns passos breves pelo apertado
corredor central do autocarro, num sentido e depois no outro. Foi advertido
pelo condutor do autocarro, que pediu educadamente que regressasse ao lugar por
questões de segurança. Assim fez.
(Na memória, ficaram gravados os
seios avantajados da mulher três filas atrás. Tirou uns instantes para reter o
episódio. Em todos estes meses de fuga, era a primeira vez que os atributos
corporais de uma mulher despertaram os sentidos. Ficou preocupado: primeiro, só
agora notara que andou todos estes meses numa letargia carnal, o que podia remeter
para um quadro patológico; sossegou-se, em segundo lugar, ao dar conta da anomalia
dos meses anteriores, admitindo o despertar dessa letargia e o voltar à vida. Anotou
na agenda mnemónica: na próxima paragem haveria de meter conversa com aquela
mulher.)
Olhou através da janela, apreciando a
aridez repetitiva, cansativa, da pradaria. Era um território desconhecido, uma
paisagem a que o olhar não se habituava. Já lera alguma coisa sobre pessoas que
se encantam com a paisagem debruada por desertos. Continuava sem perceber o
manifesto. A paisagem plana perdia-se de vista, quase como se naquele lugar o
horizonte tivesse sido extinto pela perenidade da paisagem. Horas e horas a
fio, milhas que não pareciam ter fim. Era como se o autocarro avançasse pela
estrada fora e, ao mesmo tempo, a paisagem não saísse do lugar.
Através do vidro escurecido,
entreolhou o rosto. Agora tinha barba hirsuta, o que nunca acontecera antes. Percebeu,
ao fim de todo o tempo de fuga, que não se escanhoou. Lembra-se, nos primeiros
dias de viagem, de ter dado conta do esquecimento, pois os utensílios para
fazer a barba tinham ficado em casa. O esquecimento, a meias com a demência
controlada do momento, levou-o a uma jura: não compraria o estojo de barba. Quando
se olhou no reflexo do vidro fumado, teve um primeiro impulso de não reconhecer
o rosto devolvido pela vidraça. Sentiu o mesmo quando ouviu pela primeira vez,
ainda adolescente, uma gravação da voz: dessa vez, jurou que a voz não era sua,
tão estranha lhe parecera. E se a mulher com os seios generosos caísse em
encantos por ele, e se pedisse insistentemente que se escanhoasse e deixasse o
rosto nu, como responderia? Fez marcha-atrás na mnemónica das intenções: já não
estava interessado em abordar aquela mulher.
Estava longe de parecer Karl Marx. Não
só a barba não era tão hirsuta, como faltavam os abundantes pelos grisalhos. Outra
vez o primo Arnaldo a saltar do armário das lembranças: quantas vezes, nas suas
prédicas enfadonhas, a que ninguém na família dava atenção, ele referiu o nome
de Marx. Não era assim, a sua barba. Nem ele era como Marx. Lembra-se de ter
visto um filme que romanceava a vida de Marx. Só se lembra disso, não se lembra
do enredo nem de outros detalhes do filme. Como não era dado aos ativismos da
política, nem dedicava grande atenção à marcha dos acontecimentos, não sabia
dizer se era marxista ou se não gostava do catecismo marxista. Pouco lhe
interessava. A não ser que a sua barba diferia da barba de Karl Marx. Assemelhava-se
a uma barba hipster em construção.
Como lhe chegou aos ouvidos que os hipsters são os homens que estão na
moda, decidiu (antes de o sono o levar para a sua soberania) que a barba continuaria
a crescer. Pela primeira vez, daria atenção a um modismo.
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