27.4.17

Correio atrasado (30)


Tricky, “Evolution Revolution Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=lWIeVTs94rI    
Um homem velho atravessa a rua. Vagarosamente. Parece transportar o seu peso morto sobre as costas. O ar é compungido. Não sabe se os sapatos estão apertados, ou se apenas apetece percorrer a rua em passo lento, ou se tem dificuldade em locomover-se. Segue o homem na sua deambulação. Quer saber se o idoso vai calcorrear as ruas da cidade durante muito tempo, num desfile de sofrimento. E porque – sem perceber ao início – teve a vontade de saber por dentro as causas daquele penar.
O tempo vagaroso é a medida de tudo. Talvez o homem velho não esteja doente. Seria – continuou a especular – apenas critério para não ficar amordaçado pela contingência do tempo que se quer passado depressa e depois sobram os lamentos de que já não tem serventia usar o tempo que foi despromovido à casta do passado. Ao menos, não era difícil ir na peugada do velho. Paradoxalmente, era até mais fastidioso: caminhar tão devagar, como nunca andara, obrigava a atravessar frequentemente a rua de um lado para o outro e depois vice-versa – e assim sucessivamente; e obrigava a frequentes paragens nas lojas que – ao menos isso – estavam espalhadas ao longo da rua.
Não fazia ideia se o homem velho se sabia perseguido. Em rigor, não era uma perseguição. Ou melhor: era uma perseguição, mas não tinha a ressonância malévola que se embebe numa perseguição. Preferia dizer (a quem o pudesse ouvir nesta demanda) que cuidava de ver se o homem não ia sucumbir à dor que mostrava, lancinante, a cada passo que se estreitava no biombo das pernas que se arrastavam. O homem vagaroso podia precisar de assistência, pois o colapso parecia estar à espreita. Contudo, tudo isto era um simulacro das suas intenções. O que o moveu foi a preenchida curiosidade do passo vagaroso do homem; queria ver se tinha um destino acertado, ou se apenas errava na indiferença orçamentada pela dor intensa que andar causava ao idoso.
Uma luz acendeu-se na faixa limítrofe do pensamento: que se precatasse, que descaía na mesma indignidade da simulação do mendigo. Desta vez, o juízo do seu ato não teria contemplação. Da outra vez, salvou-se da indecência porque o mendigo que servira de mote não era pedinte – também estava a encenar um ardil qualquer. Não parecia que fosse o caso, desta vez. O homem velho tinha idade suficiente para, de acordo com a lei das probabilidades que distribui enfermidades pelas pessoas de mais idade, ter sido acometido por um mal que estorvasse o andar.
Não interessava saber por que o homem tinha saído à rua se lhe custava tanto andar. Era lá com o homem e, em não o conhecendo, não era chamado ao seu conhecimento. O homem andou e andou, por ruas e ruas, sem perceber o seu critério (repetiu algumas ruas). Não hesitou quando chegava a cruzamentos. Parecia saber ao que ia. Só que, ao repetir algumas das ruas, e em andando em círculos, já não tinha a certeza se o idoso tinha a certeza por onde queria seguir. Não parou uma única vez (a menos que os semáforos para transeuntes estivessem com o vermelho aceso). O rosto inamovível, quinze graus inclinado para baixo, continuava impenetrável. Tirando o esgar de sofrimento, o homem parecia-se com o mendigo que quisera imitar: o olhar esvaziava-se no firmamento, mais parecia que o firmamento se fundia com o nada e era no nada que o olhar desmaiava, sem redenção.  Mas não queria continuar à procura de analogias entre o mendigo que afinal era investigador e o idoso com tantas dificuldades para andar.
A digressão, em forma de inocente perseguição ao velho, teve ao menos o mérito de trazer ao conhecimento muitas ruas por onde ainda não passara. Quase se podia dizer que o velho sofrido fazia as vezes de um guia turístico. Especulava, como era costume. A tempestade cerebral, que se seguiu ao fermento da especulação, não teve demora. Em transgressão com o vagar dos passos do homem velho, o pensamento fruía com uma voracidade sem apelação. Percebeu porquê: de andar tão vagarosamente, o pensamento acelerava na inversa medida da velocidade dos passos do velho, como se o pensamento se apressasse em contrapeso do vagar do homem velho.
O velho parou a meio do nada, numa rua que não tinha sequer as lojas respiratórias para o carteiro não esbarrar na lentidão do homem idoso. Hesitou. Para não ser interpelado (podia ser que o idoso já tivesse reparado na perseguição, apesar de não desviar o olhar nem um milímetro), estugou o passo e fez menção de passar à frente do idoso. Ao mesmo tempo, ficou em sobressalto: já fazia muito tempo que o velho caminhava, com as dificuldades a crescerem à medida que a distância se metia nas varizes que enfraqueciam as pernas. O velho estava à beira da apoplexia? Abrandou, imediatamente depois de ter ultrapassado o idoso. Podia ser que o velho precisasse de parar, de folgar as pernas extenuadas – até ele, mais jovem e em mediana condição física, já estava com as pernas carcomidas pela ardência (afinal, tinha mentido a si mesmo: era frouxa a sua forma física).
Quase parou e, a medo, entreolhou pelo quadrante do ombro direito para se certificar que o velho estava parado, mas sem sinais de colapso. O idoso parecia ter sido tomado por uma súbita hibernação. O olhar permanecia ausente no exterior (e esta era a última vez – jurou, com intensidade – que fazia comparações com o mendigo que afinal o não era). As pernas não davam sinais de fraqueza. Não titubeavam na inércia a que se entregara. O rosto não estava diferente do tempo anterior em que andara em errância pelas ruas da cidade. Parou e olhou, sem tergiversar, para a retaguarda. O idoso devolveu ao rosto a autenticidade de feições humanas, quando elas são tomadas pelo conselho das emoções. E estendeu as palavras no espaço (pois o carteiro estava a alguma distância e nas redondezas soava o ruído tonitruante de uma siderurgia em plena laboração):
- Descansa, está tudo bem comigo. Só estou a recuperar o fôlego. Como deves ter notado, já estou a andar há muito tempo. Não te iludas: eu não estou doente, nem me custa a andar, por mais que te pareça o contrário. Caminho no meu vagar, de propósito. A única coisa de que me cansei, nesta vida que já levo longa, foi ter sido atraiçoado pelos querubins que ensinam a dedilhar o tempo com sofreguidão. Já há uns anos que me deixei disso. O tempo, agora, passa va-ga-ro-sa-men-te por mim. E eu meto-me no tempo devagar. Assim tenho a certeza (que até pode nem passar de uma simples impressão – mas não importa) que tenho mais tempo para degustar.  
O carteiro não tinha palavras para retorquir. Desta vez, não ficou envergonhado. O seu devaneio não fora indecente, como da outra vez. O idoso percebeu que não o perseguira com maldade. Estava tudo composto. E aprendeu, naquelas palavras certeiras do velho, que o tempo se pode virar contra as pessoas.

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