Tricky, “Evolution
Revolution Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=lWIeVTs94rI
Um homem velho atravessa a rua. Vagarosamente.
Parece transportar o seu peso morto sobre as costas. O ar é compungido. Não sabe
se os sapatos estão apertados, ou se apenas apetece percorrer a rua em passo
lento, ou se tem dificuldade em locomover-se. Segue o homem na sua deambulação.
Quer saber se o idoso vai calcorrear as ruas da cidade durante muito tempo, num
desfile de sofrimento. E porque – sem perceber ao início – teve a vontade de saber
por dentro as causas daquele penar.
O tempo vagaroso é a medida de tudo. Talvez
o homem velho não esteja doente. Seria – continuou a especular – apenas critério
para não ficar amordaçado pela contingência do tempo que se quer passado
depressa e depois sobram os lamentos de que já não tem serventia usar o tempo
que foi despromovido à casta do passado. Ao menos, não era difícil ir na
peugada do velho. Paradoxalmente, era até mais fastidioso: caminhar tão
devagar, como nunca andara, obrigava a atravessar frequentemente a rua de um
lado para o outro e depois vice-versa – e assim sucessivamente; e obrigava a frequentes
paragens nas lojas que – ao menos isso – estavam espalhadas ao longo da rua.
Não fazia ideia se o homem velho se
sabia perseguido. Em rigor, não era uma perseguição. Ou melhor: era uma
perseguição, mas não tinha a ressonância malévola que se embebe numa perseguição.
Preferia dizer (a quem o pudesse ouvir nesta demanda) que cuidava de ver se o
homem não ia sucumbir à dor que mostrava, lancinante, a cada passo que se
estreitava no biombo das pernas que se arrastavam. O homem vagaroso podia
precisar de assistência, pois o colapso parecia estar à espreita. Contudo, tudo
isto era um simulacro das suas intenções. O que o moveu foi a preenchida
curiosidade do passo vagaroso do homem; queria ver se tinha um destino
acertado, ou se apenas errava na indiferença orçamentada pela dor intensa que andar
causava ao idoso.
Uma luz acendeu-se na faixa limítrofe
do pensamento: que se precatasse, que descaía na mesma indignidade da simulação
do mendigo. Desta vez, o juízo do seu ato não teria contemplação. Da outra vez,
salvou-se da indecência porque o mendigo que servira de mote não era pedinte –
também estava a encenar um ardil qualquer. Não parecia que fosse o caso, desta
vez. O homem velho tinha idade suficiente para, de acordo com a lei das
probabilidades que distribui enfermidades pelas pessoas de mais idade, ter sido
acometido por um mal que estorvasse o andar.
Não interessava saber por que o homem
tinha saído à rua se lhe custava tanto andar. Era lá com o homem e, em não o
conhecendo, não era chamado ao seu conhecimento. O homem andou e andou, por
ruas e ruas, sem perceber o seu critério (repetiu algumas ruas). Não hesitou quando
chegava a cruzamentos. Parecia saber ao que ia. Só que, ao repetir algumas das
ruas, e em andando em círculos, já não tinha a certeza se o idoso tinha a
certeza por onde queria seguir. Não parou uma única vez (a menos que os semáforos
para transeuntes estivessem com o vermelho aceso). O rosto inamovível, quinze
graus inclinado para baixo, continuava impenetrável. Tirando o esgar de
sofrimento, o homem parecia-se com o mendigo que quisera imitar: o olhar
esvaziava-se no firmamento, mais parecia que o firmamento se fundia com o nada
e era no nada que o olhar desmaiava, sem redenção. Mas não queria continuar à procura de
analogias entre o mendigo que afinal era investigador e o idoso com tantas
dificuldades para andar.
A digressão, em forma de inocente
perseguição ao velho, teve ao menos o mérito de trazer ao conhecimento muitas
ruas por onde ainda não passara. Quase se podia dizer que o velho sofrido fazia
as vezes de um guia turístico. Especulava, como era costume. A tempestade
cerebral, que se seguiu ao fermento da especulação, não teve demora. Em transgressão
com o vagar dos passos do homem velho, o pensamento fruía com uma voracidade sem
apelação. Percebeu porquê: de andar tão vagarosamente, o pensamento acelerava
na inversa medida da velocidade dos passos do velho, como se o pensamento se
apressasse em contrapeso do vagar do homem velho.
O velho parou a meio do nada, numa
rua que não tinha sequer as lojas respiratórias para o carteiro não esbarrar na
lentidão do homem idoso. Hesitou. Para não ser interpelado (podia ser que o
idoso já tivesse reparado na perseguição, apesar de não desviar o olhar nem um milímetro),
estugou o passo e fez menção de passar à frente do idoso. Ao mesmo tempo, ficou
em sobressalto: já fazia muito tempo que o velho caminhava, com as dificuldades
a crescerem à medida que a distância se metia nas varizes que enfraqueciam as
pernas. O velho estava à beira da apoplexia? Abrandou, imediatamente depois de
ter ultrapassado o idoso. Podia ser que o velho precisasse de parar, de folgar
as pernas extenuadas – até ele, mais jovem e em mediana condição física, já
estava com as pernas carcomidas pela ardência (afinal, tinha mentido a si
mesmo: era frouxa a sua forma física).
Quase parou e, a medo, entreolhou
pelo quadrante do ombro direito para se certificar que o velho estava parado,
mas sem sinais de colapso. O idoso parecia ter sido tomado por uma súbita
hibernação. O olhar permanecia ausente no exterior (e esta era a última vez –
jurou, com intensidade – que fazia comparações com o mendigo que afinal o não
era). As pernas não davam sinais de fraqueza. Não titubeavam na inércia a que
se entregara. O rosto não estava diferente do tempo anterior em que andara em
errância pelas ruas da cidade. Parou e olhou, sem tergiversar, para a
retaguarda. O idoso devolveu ao rosto a autenticidade de feições humanas,
quando elas são tomadas pelo conselho das emoções. E estendeu as palavras no
espaço (pois o carteiro estava a alguma distância e nas redondezas soava o ruído
tonitruante de uma siderurgia em plena laboração):
- Descansa,
está tudo bem comigo. Só estou a recuperar o fôlego. Como deves ter notado, já
estou a andar há muito tempo. Não te iludas: eu não estou doente, nem me custa
a andar, por mais que te pareça o contrário. Caminho no meu vagar, de propósito.
A única coisa de que me cansei, nesta vida que já levo longa, foi ter sido
atraiçoado pelos querubins que ensinam a dedilhar o tempo com sofreguidão. Já há
uns anos que me deixei disso. O tempo, agora, passa va-ga-ro-sa-men-te por mim.
E eu meto-me no tempo devagar. Assim tenho a certeza (que até pode nem passar
de uma simples impressão – mas não importa) que tenho mais tempo para degustar.
O carteiro não tinha palavras para
retorquir. Desta vez, não ficou envergonhado. O seu devaneio não fora indecente,
como da outra vez. O idoso percebeu que não o perseguira com maldade. Estava tudo
composto. E aprendeu, naquelas palavras certeiras do velho, que o tempo se pode
virar contra as pessoas.
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