Dead Can Dance, “Fortune Presents
Gifts Not Accoding to the World”, in https://www.youtube.com/watch?v=nWDfcf2DrrQ
Estava quase na hora. Era uma
caminhada de vinte minutos até ao consultório. Não estava apertado de tempo,
pelo que se meteu ao caminho com vagar. Estranhamente, sentia a apoplexia a
esfrangalhar-se no céu da boca. Podia ser por ter metido na cabeça que a
conversa com o perito ia resolver todos os seus males e teria o condão de abrir
a cancela que faltava para derrotar a fuga. Podia ser, também, pelas hesitações
que ecoaram nas horas recentes; podia ser, afinal, que o perito, apesar das
promessas da consulta anterior, esbarrasse nos mesmos embaraços que o impediam
de descativar os freios que sobre ele se impunham.
Esboçou respostas a perguntas que
julgou serem do interesse do perito. Que empreitada nociva: tinha de adivinhar
o que o perito podia perguntar, quase como se ele estivesse a pôr-se na posição
do perito e soubesse como desalfandegar os nós que eram sua atadura. Ora, se
assim fosse – depressa percebeu – a visita ao perito não tinha préstimo. Ele seria
capaz de dar andamento ao diagnóstico e, ato contínuo, estaria capaz de
congeminar a terapêutica. Pelo andar da carruagem, ele seria o seu próprio
perito em dores da alma, com uma qualificação para o efeito que não teria rival
fora dele mesmo. Ou seja: era um exercício estulto, até indigente, aquele
esboço de diálogo imaginado em antecipação à consulta que estava a uns breves
minutos de distância. Ainda bem que medrou nesta elucubração que era do foro do
método. Ao menos, suspendeu a acareação suposta que tinha começado a tratar
enquanto os pés deixavam para trás as ruas que faltavam para chegar ao consultório.
A cada metro, sentia o coração a
acelerar, uma certa falta de ar a tomar conta da respiração, os olhos
dilatados, umas gotas de suor a escorrerem da fronte. E as dúvidas a
acastelarem-se no trono das interrogações sem limites. Já não tinha a certeza
se devia honrar a consulta. Sentia-se como o homem ao mar, sem embarcação à
vista, sem terra por imediação, sem a mediação de um bote salva-vidas que o
salvasse da fúria do mar. Não podia ser se não um pesadelo a destempo, um
pesadelo na terra firme dos sentidos em firme atalaia. Já nem sequer tinha intuição
para admitir que a desorientação que o assaltava era, muito certamente, o
produto das expetativas que descalçou depois da primeira consulta com o perito.
Antes de atravessar a avenida, mesmo à
frente dos seus olhos acontecia um atropelamento. Um senhor idoso, desatento,
atravessou a avenida quando o semáforo dava prioridade aos automóveis. O embate
com o automóvel, uma limousine antiga e gasta, pesada, foi contundente. O homem
voou por cima do automóvel e aterrou, desamparado, no asfalto. O carteiro e um
homem engravatado eram as únicas testemunhas. O condutor parou o automóvel,
saiu do seu posto e olhou para trás. Vendo o estado em que se encontrava o
transeunte, meteu-se no automóvel e fugiu a toda a velocidade. O carteiro sabático
não podia recolher a matrícula, pois não conhecia o alfabeto cirílico. O outro
homem não se esqueceu de anotar a matrícula num caderninho impecável, enquanto
já estava ao telefone (talvez a chamar uma ambulância e a polícia). Os dois homens
chegaram ao mesmo tempo junto do acidentado. Estava inanimado, com uma ferida
profunda na cabeça que sangrava abundantemente, fazendo do asfalto em redor um
rio de sangue. O homem engravatado balbuciou, enervado, umas palavras em russo.
O carteiro respondeu, em inglês, que não sabia russo. O outro homem também não
dominava o inglês. Não podiam comunicar, a não ser que tivessem destreza na
linguagem gestual.
O carteiro olhou para o relógio
enquanto amparava a cabeça maltratada do sexagenário que jazia no chão. Estava quase
na hora da consulta. O que podia fazer? Impunha-se o dever de assistência –
disso não tinha dúvida. Continuava a não aparecer mais ninguém para ajudar, no
que fosse possível naquelas circunstâncias, o homem atropelado. O outro homem
continuava a tagarelar em russo, num amontoado de palavras que lhe soavam a uma
perfeita ininteligibilidade. Assustado com a hipótese de perder a consulta,
puxou da carteira de onde retirou o cartão profissional do perito. Escreveu no
cartão, com os dedos meios ensanguentados, a data e a hora da consulta e
insistiu, com um dedo sobre a data e hora, apontando com outro dedo para o
telefone do consultório, em forma de súplica, para que o homem engravatado
telefonasse a avisar do seu atraso. O outro homem não percebeu e desviou o
olhar, pois naquela altura surgiu o primeiro veículo em marcha acelerada e com
as sirenes em modo estridente.
O carteiro ainda tinha o pobre homem
inanimado ao seu colo. O automóvel da polícia estacionou e o outro homem foi na
sua direção. O carteiro podia deixar o homem à sua sorte, pois já não estava
sozinho. Podia tentar explicar, no inglês possível para a compreensão dos polícias,
que tinha de abandonar o local por estar atrasado para uma importante consulta
médica. Podia, apenas e hipocritamente, fugir do lugar sem pré-aviso. Afinal,
esse fora o seu fado nos últimos meses. Mas o carteiro fez o contrário do
impulso bolçado pelas veias ferventes. Ficou no lugar, dando a assistência possível
ao homem atropelado, em silêncio. Faltou à consulta. Não haveria de vir grande
mal ao mundo. Assim como assim, as horas anteriores não tinham sido
convincentes quanto à utilidade da consulta com o perito. Acima de tudo,
comprazeu-se consigo mesmo: desta vez, escapara à fuga fácil.
O pobre homem estava em muito mau
estado, tal o aparato da assistência dos paramédicos assim que chegaram ao
lugar. Pelos rostos dos paramédicos, não parecia haver tempo sobrante para o
homem idoso. O carteiro sem alforria do perito em dores da alma ficou ali
parado, com as roupas ensanguentadas, ignorado pelos polícias, pelos paramédicos,
até pelo outro homem, o homem engravatado, que tinha sido testemunha do
acidente. Já não tinha vontade de ir ao consultório explicar o atraso. Já antes
não tinha vontade de ir ao consultório. Era altura de regressar ao albergue. O
pobre homem idoso não se safaria do atropelamento. Essa imagem não lhe saía do
pensamento.
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