Sensible Soccers, “Aux”, in
https://www.youtube.com/watch?v=AmglYLq-rog
Ao lado do livro na cabeceira da
cama, um telefone. Desde que chegara a Vladivostoque, o telefone era figura de
corpo presente. Nem sabia se funcionava, nem o número a que correspondia o
telefone. Nunca ninguém lhe telefonara. Nem ele tivera a necessidade de pegar
no telefone.
Desta vez, quis saber se o telefone
era um nado-morto ou se tinha algum préstimo. Pegou no telefone e sentiu que
tinha os sinais vitais ativos. Nos instantes que ficou com o auscultador colado
à orelha, e devido à sua inação, o telefone caiu no sinal sonoro que é
decifrado como interrupção. Ainda se lembrava de alguns números de telefone, de
memória: de casa, do posto dos correios, da chefe (uma boa amiga e conselheira
para os momentos mais difíceis), da casa dos pais, até o da menina quarentona
que nunca fora visitada pelo amor. (Num momento de maior proximidade entre os
dois, ela deu-lhe para a mão um papel meticulosamente dobrado com o seu número
de telefone. Ele nunca ligou. Hesitou muitas vezes, tantas que chegaram para
memorizar o número de telefone.) Uma palpitante interrogação pesou-lhe sobre o
olhar: e se ligasse para um destes números que guardava na memória? Parou a
tempo. Não queria dar passos em falso, que o seriam sem a aprovação do perito
em dores da alma.
Virou a atenção para outros preparos.
Já não era a primeira vez (nem a segunda) que, nos dias anteriores, após a
primeira consulta e antes de voltar a ser atendido pelo perito em dores da
alma, deixara de fazer certas coisas, ou condicionara a sua vontade, por aquilo
que estimava poder ser aprovado ou desaprovado pelo perito. Incomodou-se com a
constatação. Nunca dera por si a depender do que outras pessoas podiam pensar
ou dizer sobre atos prévios da sua autoria, atos sobre os quais os outros
poderiam, a posteriori, protestar com voz grossa. Desta vez parecia que estava
nas mãos do perito em dores da alma, como se ele fosse o penhor onde tinha depositado,
como caução não sabia de quê, a fortuna que era a sua vida. Isso incomodava-o.
Primeiro (não necessariamente por esta ordem de importância), porque ajuizava
que nunca se depusera nas mãos de outrem. Segundo, essa deposição significava a
decadência que seu estado atual.
Poucas horas antes de voltar ao
consultório do perito em dores da alma, o carteiro imerso em sua indomável
rebeldia começava a questionar-se se devia honrar o compromisso. As nuvens
começaram a descer sobre o pensamento, em movimento emancipatório e num rasgo
que embaciava. Era a dúvida que menos queria quando pouco tempo faltava para se
confrontar com o perito em dores da alma. Num assomo de lucidez, e em tentativa
para liquidar os fluídos ferventes que tomavam conta das veias, deixando-as
febris e pouco recetivas à lucidez, sussurrou para si mesmo que esta ansiedade
em véspera da consulta era aceitável. Teria de conviver com ela durante as
horas que faltavam para entrar no consultório. E não adiantava arranjar
expedientes para desviar o pensamento, que podiam encerrar solução pior.
À hora do almoço, sentiu uma súbita
fome. Já não se sentia tão precisado de uma refeição opípara, se a memória não
o atraiçoava, desde que empreendera a fuga. Não quis atribuir significado à insólita
vontade de comer principescamente. Já aprendera que, em Vladivostoque, a
gastronomia era banal. Mesmo assim, entrou no primeiro restaurante e pediu a
ementa. Vinha escrita em cirílico. Perguntou se não havia uma versão em inglês.
A empregada, uma rapariga bonita e curvilínea, ainda jovem, morena como não
havia muitas em Vladivostoque, respondeu num inglês esforçado que não, que não
era habitual, porque a cidade não era visitada por muitos turistas. Ele pediu
ajuda na tradução – ou que, pelo menos, ela dissesse quais os pratos recomendados.
A rapariga tergiversou e corou. Ele não sabia se era da sua solicitação ou de a
convidar a estender o inglês esforçado para a descrição das iguarias servidas
no restaurante.
Durante a amesendação, notou que a
rapariga o atendeu com uma deferência inabitual. Não estava há muito tempo em Vladivostoque,
mas já percebera que não é por acaso que se fala da frieza dos russos, geralmente
indiferentes ao seu semelhante. Se o semelhante for um estrangeiro, ainda mais
se nota. A rapariga desdobrava-se em atenções, com uma simpatia contagiante, um
sorriso enternecedor, um resfolegar – como dizê-lo? - sintomático. Sempre no
seu inglês esforçado, perguntando, uma e outra vez, se estava tudo de acordo
com o gosto do forasteiro. Acreditou que a deferência era por ser estrangeiro e
por ela ter confessado que rareiam os estrangeiros por aquelas paragens remotas.
Talvez a rapariga não reproduzisse o estereótipo da frieza russa.
À saída, depois de uma gorjeta generosa
(hipostasiou, ainda que sem bitola para comparar), despediu-se da empregada de
mesa. Ela respondeu, em tom de indagação: “até
à próxima?” Hesitou uns segundos, antes de responder: “quase de certeza”, enquanto admitia que a resposta mentirosa era uma
piedade necessária.
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