Pond, “The Weather” in https://www.youtube.com/watch?v=gS-bqTWOuKI
A primeira refeição (no Canadá). Comia-se
melhor no cargueiro. Não há problema. Reforçou a ideia de que o mar mete
respeito. Não podia ser esse o seu habitat. Voltou aos pensamentos sobre a
refeição: que comida sem sabor, que mistura de ingredientes sem imaginação, que
mistela desaprovada. Sempre ouvira dizer que os povos da América do Norte não são
conhecidos pela criatividade gastronómica. Confirmou-o em pessoa. Não tinha importância:
não estava em viagem para conhecer a gastronomia local. Nem, que se lembrasse,
no passado deu grande importância a estes assuntos – a bem da verdade, comia
apenas porque tinha necessidade para se manter, não era aquilo a que se
convencionou chamar um “bom garfo”.
Isto era resultado da consabida teima
de se desviar do essencial e atirar as atenções para o acessório. Que, a meio
do caminho, já tomava o lugar do essencial, passando o acessório a funcionar
como essencial. Havia alturas em que se embrenhava numa profunda discussão
ontológica sobre o que seria de essencial consideração e o que podia reputar de
acessório, debatendo-se com pungentes dúvidas existenciais que tinham relação
com a possível resposta à questão de partida. Ficava dividido. A certa altura,
julgava saber o que era essencial, mas perdia-se pelos remotos descaminhos do
acessório. Quando tal acontecia, julgava estar equivocado no ponto de partida,
pois tanto esforço intelectual dedicado ao que ao início era considerado essencial
podia ser um logro e, afinal, o que julgava ser acessório tinha foros de
essencialidade. Até que, cansado de tantas elucubrações, e perdido no sem
firmamento em que se enovelavam as contradições internas, tinha um laivo de
lucidez e punha fim à discussão interminável entre os seus vários hemisférios
interiores, concluindo que não interessava saber o que continha a
essencialidade e o que era remetido ao lugar subordinado de acessório.
Quase no fim do repasto, cinco atores
de uma companhia de teatro subiram ao palco improvisado do restaurante. Numa língua
que ele desconhecia – o que cativou a sua curiosidade: afinal estava em
Vancouver, onde a língua oficial é o inglês – um dos atores anunciou qualquer
coisa, ininteligível ao seu entendimento. Ato contínuo, os atores começaram a
contracenar, seguindo uma narrativa agitada, os corpos mudando frequentemente
de lugar na exiguidade do palco, as falas sobrepondo-se umas às outras, às
vezes os corpos confrontando-se no simulacro de uma peleja física. Não entendeu
uma só palavra do que fora dito, mas ficou impressionado com a intensidade da
curta peça, dos rostos dos atores embebidos na trama, nas suas respirações
ofegantes, sinal da exigência física (e não só intelectual) da peça.
Pareceu-lhe perceber que os cinco
atores eram a personificação de entidades mutuamente cooperantes. Por qualquer
razão não revelada, eram corteses uns com os outros, colaboravam, participavam
na vida que era o substrato social do grupo. A partir de certa altura, por
causa de eventos que não viriam ao caso (ou que ele não conseguiu determinar),
passaram a confrontar-se. A desconfiança foi subindo à medida que se acusavam
reciprocamente de traições, de quererem tirar partido da concórdia em proveito
próprio, com notório desfavor dos demais. Todos se acusavam mutuamente do
desvio de comportamento que hipotecava a boa convivência.
Depressa os atores entraram na fase
violenta. Primeiro, com rixas que terminavam com os lutadores a precisarem de
tratamento médico. Jurando um ao outro vingança numa forma que seria implacável.
Seguiam-se os sucessivos assassinatos. Até que a peça terminou com um ator em
palco, ajoelhado sob o cadáver do último oponente, arrancando o fundo punhal da
carne do oponente, o sangue a escorrer para as suas mãos extenuadas. A peça
terminava com as lágrimas vertidas pelo vencedor sobre o sangue que se tinha
derramado para as suas mãos. Ainda ajoelhado, em penitente arrependimento. Sabendo
que agora estava sozinho. Sem se perceber se o arrependimento era por ter
ficado sozinho, ou se por se ter esgotado a fonte de vítimas que alimentaram o devaneio
violento, animalesco.
À saída do restaurante-teatro, não
reprimiu a pergunta que se impunha. Ficou a saber que aquele era o lugar onde
se juntavam as pessoas da comunidade sérvia. Havia uma injustiça que tinha de
corrigir: aquela gastronomia desqualificada não podia ser atribuída ao Canadá.
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