14.4.17

Correio atrasado (21)


King Gizzard & the Lizard Wizard, “Lord of Lightning” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=qK6JHtv9Qt8    
A estrutura minimalista dos edifícios, espetados em direção do céu, foi o que mais o alvoroçou. Vancouver era uma cidade americana, igual àquelas que as pessoas estavam habituadas a ver mesmo sem alguma vez terem ido ao continente americano, fruto da – diz-se por aí – colonização cultural americana. Os arranha-céus atamancados entre ruas estreitas metiam impressão, era quase impossível ter uma nesga do céu aberta aos olhos. Ao fim do dia, estranhou uma dor aguda no pescoço. Depois entendeu: de andar tanto tempo de cabeça erguida ao céu, num ângulo a que não estava habituado (mercê de elevada estatura dos arranha-céus), os músculos do pescoço doíam.
Não havia árvores, nem jardins, nem – por consequência – aves esvoaçando ou pousando nas ramagens. Não havia gatos nem cães vadios em sua vadiagem pelas ruas da cidade (como estava habituado). Só havia gente, gente com rostos de proveniências várias, num caldeirão de culturas que era a idiossincrasia do Canadá, gente calada, impassível. Gente e edifícios muito altos, quase hipotecando o céu, condenando o solo a horas intermináveis de sombra. Havia ruas estreitas que davam guarida a arranha-céus que, por serem tão estreitas e balizarem arranha-céus de tamanho arcaboiço, não deixavam a luz do sol beijar o solo. Dias depois, alguém lhe diria, a propósito desta sua estranheza, que havia ruas em Vancouver que eram laboratórios de microclima.
O centro da cidade era isto: um deserto vigoroso de edifícios que irrompiam na direção do céu. Os arranha-céus – podia-se dizer, sem correr o risco de exagero – queriam colonizar pedaços do céu. Não era linguagem simbólica. Mesmo que fosse impossível açambarcar pedaços do céu (no seu sentido físico), os termos práticos da equação conduziam a um resultado semelhante por outros meios. Como os arranha-céus eram cortinas baças que retiravam ao chão o efeito terapêutico de um dia soalheiro, eles transfiguravam o céu de Vancouver. Os arranha-céus eram o céu de Vancouver.
As pessoas não se falavam quando cruzavam umas com as outras nas ruas. O metro era um ritual constante de silêncio, mesmo nas horas de ponta, quando ia mais cheio (sem nunca estar sobrelotado). Na combustão de cores que invadia a noite, os rostos diferentes confundiam-se nos néones exibidos pela impudica publicidade que, nas entrelinhas, advertia para os terríveis efeitos da exposição prolongada ao capitalismo (e à publicidade, por alguns julgada sua degenerescência).
Havia uma calma bucólica, assintomática para uma grande urbe. Mesmo durante os dias laborais, em plena hora de ponta, quando as pessoas se cruzavam na azáfama de irem para o trabalho ou de, ainda mais apressadas, entabularem o caminho de regresso a casa. A pressa era vagarosa, paradoxalmente vagarosa. Era diferente da imagem que guardara dos tais filmes que eram subproduto da dita colonização cultural americana, onde os executivos se misturavam no metro com a maralha e seguiam sempre atarefados, como se estivessem sempre atrasados para algo – como se andassem aos dias de demora e não conseguissem esgaçar o atraso. Mas sempre ouvira dizer que o Canadá, embora vizinho dos Estados Unidos, era muito diferente.
 Imerso nestas observações para acautelar a sede de conhecimento inata ao viajante desprendido em que se tornara, foi fazendo suas andanças na companhia de um pequeno caderno de anotações. Era aí que escrevia, em arrevesada estenografia, anotações sobre lugares visitados, pensamentos dispersos que subiam a palco quando menos esperava. Havia uma ordem espontânea que o incomodou. Nunca acreditou em ideias de perfeição de organização social. Em países mais próximos, como a Suíça, tomara conhecimento de ingredientes de uma ordem que se pretendia exemplar, mas intuía (por relatos de familiares e amigos que andaram emigrados na Suíça) que uma certa autorrepressão coibia as pessoas de fazerem o que lhes apetecia. Por mais que lhe explicassem que isso acontecia em homenagem ao “grande bem comum”, e que a maioria aceitava a fatura a pagar pela ordem exemplar, não compreendia o garrote sobre as pessoas. A perfeição é um logro. É totalitária. Mais ainda quando se joga contra a mais pura das liberdades que as pessoas têm à mão, que é a liberdade de serem quem são sem peias impostas de fora para dentro. Batia certo: sempre ouvira dizer que o Canadá era uma espécie de Suíça em exportação para o continente americano.
Nesta ordem sublimada, não havia polícias na rua. (Ou, se os havia, eram sob o disfarce de polícias à paisana.) Não havia polícias apeados, nem montados a cavalo, nem transportados em carros-patrulha. As pessoas pareciam confiar umas nas outras. Não se falavam na rua, nem quando andavam na companhia de conhecidos; mas confiavam umas nas outras, tal a ordem que transpirava na cidade, uma ordem ostentada numa harmonia singular. Era uma ordem que o incomodava. Tinha a oportunidade de sentir, em carne viva, os contos que lhe traziam da Suíça. Confirmou as ideias formadas: uma ordem com tantos laivos de perfeição não é espontânea, é o produto de contratos que dissolvem a liberdade das pessoas (mesmo que a retórica convença os cidadãos que o contrato é de livre adesão). Tudo era o odor do artificial.
Interrogou-se se, nesta era de exceções que se abriam aos princípios que julgava centrípetos, não fazia sentido virar-se outra vez do avesso. Se não fazia sentido um desafio que julgava impossível de vencer: viver num lugar ungido pelo ideal propagandeado da perfeição humana, sendo ele peça de uma engrenagem onde imperava uma ordem que era um desafio à rebeldia incorrigível que sentia (e cada vez mais) latejar por dentro das veias. Ao fim e ao cabo, esta viagem, já demorada, era uma experiência do tamanho do mundo. Uma provação anestesiada. Talvez já não fosse tão insubmisso como o latejar das veias pressagiava.
Só alguns dias depois de travar conhecimento com a perfeição instalada em Vancouver é que se apercebeu que um importante elemento estava em falta: ainda não fora confrontado com a pobreza na rua. Foi nesse dia que deu conta da omissão. Até que, enfim, nas suas digressões pelas ruas de Vancouver, encontrou o primeiro pedinte na rua.

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