21.4.17

Correio atrasado (26)


Bauhaus, “Ziggy Stardust” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=xJ1ilWEqUo4    
O nevoeiro quase não deixava ver nada. Havia uns vultos, possivelmente pessoas que passavam de um lado para o outro, errantes. E ele, inerte, no meio da avenida, no separador central entre as duas vias que, fosse hora de ponta, estavam apinhadas de carros, ora passando em alta velocidade, ora travando o passo mercê do trânsito afunilado. Queria sair dali, mas sentia os movimentos presos. Como se, de repente, tivesse os membros paralisados.
De um dos lados da avenida, num prédio sobranceiro, uma menina de olhar triste passava uma longa temporada à janela. Com o nevoeiro que estava, pouco veriam os seus olhos. Mesmo assim, a menina continuava de cotovelos fincados no parapeito da janela, olhando e olhando a rua – ou talvez apenas alimentando sonhos impossíveis por dentro de uma existência amputada. Ao mesmo tempo, um táxi abrandou ao notar que ele estava imóvel no separador central da avenida. Não chegou a parar: o condutor olhou, entre o retrovisor e a pequena janela exterior, e ter-se-á assustado, estugando a marcha assim que pôde. O carteiro olhou por si a baixo e percebeu que estava despojado de roupas, sem saber como tinha ido parar àquele lugar naquela nudez. Não se incomodou – logo ele, que noutros momentos sempre fora pudico e agora estava calmo com a sua pública nudez.
Conseguiu-se libertar da paralisação dos membros e atravessou a avenida para o lado contrário do bloco de apartamentos onde a menina melancólica continuava à janela. Caminhou, lentamente, pelo passeio contíguo. Ao fim da avenida, um intenso néon anunciava um estabelecimento comercial ainda aberto àquela hora tão tardia. Não se apressou. O estabelecimento não fecharia até chegar à sua porta – disso estava convencido, sem, contudo, perceber por que se convenceu de tal. Podia ser que houvesse gente a quem pudesse pedir ajuda, pois não queria continuar naqueles preparos e a polícia, se o apanhasse, podia levá-lo para a cadeia acusado de atentado ao pudor. Na pior das hipóteses, podiam julgá-lo demente e o internamento num hospício seria a paga, com camisa-de-forças vestida a tolher a sua liberdade.
O estabelecimento comercial era um bar noturno. Àquela hora tão tardia, só boémios e outra gente de pergaminhos pouco recomendáveis seriam clientela. Não era mau que assim fosse: gente dessa não costuma frequentar os descaminhos dos preconceitos; seria mais fácil encontrar quem tivesse a mente despejada e o ajudasse a encontrar o caminho de regresso a casa. Parou uns instantes antes de entrar. O nevoeiro não era suficiente para o cobrir de frio na sua nudez. Tinha de parar para pensar antes de entrar e, possivelmente, chocar os presentes com os preparos em que se encontrava. Sabia que pediria ajuda para regressar a casa. Mas não sabia onde era a sua casa. Teria o nevoeiro embaciado a lucidez e retirado do mapa mental o lugar onde tinha uma cama à espera para descansar do dia extenuante? Qual a utilidade de pedir ajuda se não sabia aonde o levaria a pessoa piedosa? Seguiu o seu caminho, passando à frente da porta do bar sem se deter, ouvindo com nitidez a música e um burburinho de vozes denotando lotação esgotada.
Continuou pela avenida fora, sem medo de ser apanhado na nudez em contramão. Encontrou um lugar sombrio, um edifício abandonado do que outrora fora uma fábrica. Refugiou-se no edifício. Tinha de descansar. Não sabia que horas eram, se ainda faltava muito tempo para a alvorada sepultar a noite e ficar exposto à multidão que desceria às ruas da cidade na azáfama quotidiana. Seriam apenas uns minutos de descanso. Um dos pés já sangrava, mercê da caminhada com os pés desprotegidos que apanhavam os detritos espalhados no passeio da avenida. À sua frente, uma sala ampla, misteriosamente iluminada por um candeeiro de onde irradiava uma luz timorata. Não teve medo. A iluminação dava a entender que havia gente que tinha o edifício abandonado como refúgio.
Pé ante pé, aproximou-se da porta que dava entrada para a sala. Entrou. A sala tinha três sofás decadentes diligentemente montados em três dos quatro lados da sala. Estavam ocupados. Ao início, na luz desmaiada alimentada pelo pequeno candeeiro, não conseguiu notar os rostos. Estavam todos com chapéus, tornando mais difícil ver com nitidez os rostos. Aproximou-se. Sem receio do escarnecimento por causa da sua nudez, que deixava à mostra a insegurança por causa do corpo desmedido, algo flácido, do sexo à mostra (e ele, de repente, retomando a vergonha que sempre tivera da sua nudez). Os rostos eram familiares. A menina melancólica atenta ao movimento da rua desde a prisão da sua janela. O mendigo que afinal era um cientista a fazer de conta que era mendigo. O comandante do cargueiro que o trouxe de Vladivostoque. O chefe da cozinha do cargueiro. A rapariga metediça que o servira no restaurante em Vladivostoque. O perito em dores da alma que prometera tratar das suas dores interiores. Alguns rostos sem marcas distintas, como se fossem rostos sem rosto, que pertenciam a companheiros de boémia que o foram acompanhando na viagem em forma de fuga, rostos de gente ocasional. Outros rostos, também indistintos, de pessoas que estavam nas receções dos lugares onde tinha pernoitado ao longo da viagem, dos revisores dos comboios, dos funcionários das bilheteiras onde comprou as viagens. O funcionário que tomava conta do elevador basculante em Berlim. A chefe dos correios. A menina quarentona viciada no desamor que fazia encomendas de propósito só para ele ser visita assídua a sua casa, com o habitual olhar que fundia a timidez com a lascívia. O irmão emigrado na África do Sul (de que já não tinha imagem do rosto, tanta a ausência). A consorte que fugiu na companhia do vendedor de rua, trazendo no ventre o nascituro que ele não lhe soube dar. Os pais – como sempre, em sua pose rígida, com um ar de reprovação em riste. O músico francês que conheceu num bar em Lisboa e com quem repartiu uma noite de boémia no bas-fond da cidade, ao ponto de não se lembrar do seu nome. A professora da escola primária, na sua bondade paradoxal. O pediatra que nunca ligara aos achaques menores que sempre sobressaltavam mais os avós paternos do que os pais. Todos olhando-o em silêncio. Com uma tesoura nas mãos. Um silêncio patibular. Um silêncio de onde pressentia as piores palavras de censura pelo que fora até àquele momento, pelas decisões que tomara e pelas outras que não tomara por erro de apreciação.
Acordou. Encharcado em suor. Fora um pesadelo. Sentia arrepios. Talvez estivesse febril. Com frugal lucidez, até para a ausência que é habitual em pesadelos. Havia um dia pela frente. Para esquecer as dores do pesadelo.

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