6.4.17

Correio atrasado (15)


Justice, “D.A.N.C.E.”, in https://www.youtube.com/watch?v=sy1dYFGkPUE    
Não eram as imagens do idoso catapultado pelo automóvel desenfreado que tiravam o sono. Não era a porventura morte do homem atropelado. Não era a fuga do condutor do automóvel, o que podia levantar outras interrogações: por que fugiu, se a culpa fora da distração do idoso? Por que há uma certa moda para fazer julgamentos sumários dos atos dos outros, mesmo quando esses sumários julgamentos são motivados por uma observação superficial dos atos que pode dar origem ao entendimento, com uma moral datada a tiracolo, de que os fins servem sempre para justificar os meios, todos os meios? Também não era razão da insónia persistente o ter faltado à consulta com o perito, quando não muito tempo antes a consulta era centrípeta para limpar as nódoas que o desavisavam do cosmos onde habitam as pessoas recomendáveis. Aliás, se outra conclusão podia retirar de ter prescindido do perito em dores da alma, era o alívio de que, afinal, não precisava de prescrição exterior para se corrigir. Era um começo.
(Logo a seguir – e talvez essa fosse a razão da demorada insónia – laborou na dúvida profunda: e se não fosse começo, antes pelo contrário, nesta decisão medrasse a indecisão que o ata a incógnitas sem solução? Pela primeira vez, entendeu-se narcísico. Era o que talvez pudesse concluir ao teimar que ninguém o pode ajudar e que a ajuda tem de partir por dentro dele. Havia neste entendimento um certo ensimesmar, provavelmente a raiz quadrada de uma maleita que teimava em não admitir. E havia, também, um certo orgulho bravo em não consentir que alguém lhe podia estender a mão.)
Era o estado em que se encontrava: refém das continuadas irresoluções. Sitiado por constantes paradoxos que o cobriam – pois se, num momento, tinha a humildade de se olhar de fora para dentro e discernir o que configuravam as pessoais lamentações, logo a seguir jurava a pés juntos que só ele estava em condições para superar os contratempos que o apoquentavam com durabilidade, prescindindo das ajudas exteriores. O pensamento andava numa rebeldia constante, como se uma tempestade cerebral se amotinasse sem que ele encontrasse a chave para domesticar os ímpetos vertiginosos.
Passaram dias e o carteiro continuava aprisionado nesta indecisão. Maquinalmente, continuava a cumprir as funções na biblioteca (seleção e arquivamento da imprensa estrangeira). Ao menos, tinha um rédito. Ao menos, continuava a par do andamento do mundo – uma forma de se manter arreigado à casa que começava a entender ser a sua e que tinha o tamanho do mundo inteiro. As horas no trabalho eram como se estivesse anestesiado. Ao menos, não dava conta de o tempo passar, ao contrário da maior parte das pessoas que trabalham contrariadas e parecem prisioneiras a contar, um a um, os dias que faltam para a libertação. Depois de ter falhado a (até a certa altura) promissora conversa com o perito em dores da alma, sem dar conta confinou-se à reclusão depois do trabalho. Dispensava-se dos lugares onde sabia estarem os estroinas que seriam más companhias, os lugares onde os vícios todos se insinuavam na escala do hedonismo. Deixou de atender as solicitações dos estroinas. Convenceu-se que esta mudança era um bom sinal.
(E, imediatamente a seguir, só para confirmar como está dividido entre dois hemisférios de sinal contrário, interrogou-se se seria bom sinal ter mudado de vida, se esta feição monástica era motivo de aplauso. Os lugares-tenentes da moral que ele detestava – moral e seus lugares-tenentes, por igual medida – apressar-se-iam a atestar que sim, que fez bem em distanciar-se da vida viciosa. Ele não estava tão seguro. Mais por uma questão de metodologia do pensamento. Sempre recusara todos os imperativos categóricos e detestava os pronunciamentos que se untassem numa qualquer moralidade. Mas decidiu que não importava estabelecer se a reclusão a que se destinara era bom ou mau sinal. Tinha de parar de atribuir significados às decisões e às não decisões de sua lavra.)
Já tinha passado algum tempo desde que dera por si em Vladivostoque. Pela primeira vez desde que empreendera a fuga, não estava cansado de um lugar. Sem saber porquê, sentia-se bem em Vladivostoque.
(Ou talvez não, retomando o altar das indecisões: porventura o afastamento da vida licenciosa permitira a recuperação de algum sossego do pensamento. Já não andava constantemente nos limites dos paradoxos, a querer uma coisa agora e o seu contrário logo a seguir. Já não sentia arrependimento das coisas que vagamente se lembrava de ter feito quando a consciência regressava ao lugar. E, talvez o mais importante, passara algum tempo desde que sentiu sede de voltar a casa. Não podia dar por adquirido que isso fosse sinónimo de se sentir confortável em Vladivostoque. Até prova em contrário, as coisas seriam estas. A sua jura foi a de não forjar circunstâncias que fossem a denegação deste estado de coisas, que não desalfandegassem a “prova em contrário”.)
Por via das dúvidas, começou a aprender russo.

Sem comentários: