Justice, “D.A.N.C.E.”, in https://www.youtube.com/watch?v=sy1dYFGkPUE
Não eram as imagens do idoso
catapultado pelo automóvel desenfreado que tiravam o sono. Não era a porventura
morte do homem atropelado. Não era a fuga do condutor do automóvel, o que podia
levantar outras interrogações: por que fugiu, se a culpa fora da distração do
idoso? Por que há uma certa moda para fazer julgamentos sumários dos atos dos
outros, mesmo quando esses sumários julgamentos são motivados por uma observação
superficial dos atos que pode dar origem ao entendimento, com uma moral datada
a tiracolo, de que os fins servem sempre para justificar os meios, todos os
meios? Também não era razão da insónia persistente o ter faltado à consulta com
o perito, quando não muito tempo antes a consulta era centrípeta para limpar as
nódoas que o desavisavam do cosmos onde habitam as pessoas recomendáveis. Aliás,
se outra conclusão podia retirar de ter prescindido do perito em dores da alma,
era o alívio de que, afinal, não precisava de prescrição exterior para se
corrigir. Era um começo.
(Logo a seguir – e talvez essa fosse
a razão da demorada insónia – laborou na dúvida profunda: e se não fosse
começo, antes pelo contrário, nesta decisão medrasse a indecisão que o ata a incógnitas
sem solução? Pela primeira vez, entendeu-se narcísico. Era o que talvez pudesse
concluir ao teimar que ninguém o pode ajudar e que a ajuda tem de partir por
dentro dele. Havia neste entendimento um certo ensimesmar, provavelmente a raiz
quadrada de uma maleita que teimava em não admitir. E havia, também, um certo
orgulho bravo em não consentir que alguém lhe podia estender a mão.)
Era o estado em que se encontrava:
refém das continuadas irresoluções. Sitiado por constantes paradoxos que o
cobriam – pois se, num momento, tinha a humildade de se olhar de fora para
dentro e discernir o que configuravam as pessoais lamentações, logo a seguir
jurava a pés juntos que só ele estava em condições para superar os contratempos
que o apoquentavam com durabilidade, prescindindo das ajudas exteriores. O pensamento
andava numa rebeldia constante, como se uma tempestade cerebral se amotinasse
sem que ele encontrasse a chave para domesticar os ímpetos vertiginosos.
Passaram dias e o carteiro continuava
aprisionado nesta indecisão. Maquinalmente, continuava a cumprir as funções na
biblioteca (seleção e arquivamento da imprensa estrangeira). Ao menos, tinha um
rédito. Ao menos, continuava a par do andamento do mundo – uma forma de se
manter arreigado à casa que começava a entender ser a sua e que tinha o tamanho
do mundo inteiro. As horas no trabalho eram como se estivesse anestesiado. Ao menos,
não dava conta de o tempo passar, ao contrário da maior parte das pessoas que
trabalham contrariadas e parecem prisioneiras a contar, um a um, os dias que
faltam para a libertação. Depois de ter falhado a (até a certa altura)
promissora conversa com o perito em dores da alma, sem dar conta confinou-se à reclusão
depois do trabalho. Dispensava-se dos lugares onde sabia estarem os estroinas
que seriam más companhias, os lugares onde os vícios todos se insinuavam na
escala do hedonismo. Deixou de atender as solicitações dos estroinas. Convenceu-se
que esta mudança era um bom sinal.
(E, imediatamente a seguir, só para
confirmar como está dividido entre dois hemisférios de sinal contrário,
interrogou-se se seria bom sinal ter mudado de vida, se esta feição monástica era
motivo de aplauso. Os lugares-tenentes da moral que ele detestava – moral e
seus lugares-tenentes, por igual medida – apressar-se-iam a atestar que sim,
que fez bem em distanciar-se da vida viciosa. Ele não estava tão seguro. Mais por
uma questão de metodologia do pensamento. Sempre recusara todos os imperativos
categóricos e detestava os pronunciamentos que se untassem numa qualquer
moralidade. Mas decidiu que não importava estabelecer se a reclusão a que se
destinara era bom ou mau sinal. Tinha de parar de atribuir significados às
decisões e às não decisões de sua lavra.)
Já tinha passado algum tempo desde
que dera por si em Vladivostoque. Pela primeira vez desde que empreendera a
fuga, não estava cansado de um lugar. Sem saber porquê, sentia-se bem em Vladivostoque.
(Ou talvez não, retomando o altar das
indecisões: porventura o afastamento da vida licenciosa permitira a recuperação
de algum sossego do pensamento. Já não andava constantemente nos limites dos
paradoxos, a querer uma coisa agora e o seu contrário logo a seguir. Já não sentia
arrependimento das coisas que vagamente se lembrava de ter feito quando a
consciência regressava ao lugar. E, talvez o mais importante, passara algum
tempo desde que sentiu sede de voltar a casa. Não podia dar por adquirido que
isso fosse sinónimo de se sentir confortável em Vladivostoque. Até prova em
contrário, as coisas seriam estas. A sua jura foi a de não forjar circunstâncias
que fossem a denegação deste estado de coisas, que não desalfandegassem a “prova
em contrário”.)
Por via das dúvidas, começou a
aprender russo.
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