19.4.17

Correio atrasado (24)


Iggy Pop, “Sunday”, in https://www.youtube.com/watch?v=tjSnrDikc4M    
O carteiro ensaiava o caminho de regresso a casa quando ouviu um murmúrio atrás de si:
- Não vás embora. Não vás embora!
Era o mendigo que se desprendera do olhar ausente, da sua impassibilidade, e queria conversar com o carteiro. Esteve parado algum tempo, enquanto o mendigo repetia a solicitação e a enfatizava com o acenar da mão que convidada a sentar-se ao seu lado. O carteiro hesitou. Não estava seguro se devia juntar-se ao mendigo. A dúvida não era pelo mendigo; era por si, por estar incomodado com a frivolidade daquele dia, quando, sem pensar duas vezes sobre o assunto, tomou as rédeas da simulação de um mendigo. Continuava revoltado consigo mesmo: como fora possível prestar-se a tal papel? Como fora possível ultrajar as pessoas que são genuínos mendigos? Mas o mendigo repetia o pedido, adicionando um humilde “por favor, por favor”, desviando o olhar, que estivera tanto perdido no horizonte sem balizas, para os olhos do carteiro. Por fim, o carteiro decidiu-se e deu passos vagarosos, a medo, em direção do mendigo.
- Senta-te ao pé de mim. Não tenhas medo. Queria falar contigo, só por algum tempo.
O carteiro correspondeu ao pedido do mendigo. Arranjou lugar próximo da desarrumação, com o cuidado de não se chegar à miscelânea de haveres sujos. A sua compulsiva mania pela higiene foi subitamente resgatada das catacumbas da memória. Ou era o remorso que o constrangia, deixando-o sem à-vontade para enfrentar o verdadeiro mendigo.
- Obrigado! Obrigado por me teres deixado estas moedas e esta nota. Foste muito gentil.
- Ora essa...hum...não custou nada... – ripostou o carteiro, atrapalhado, sem saber ao certo o que dizer, com a lucidez de saber que naquele momento o seu aspeto exterior pouco diferia do mendigo genuíno.
- Devo confessar que fiquei admirado, até perplexo. Neste tempo que levo de sem-abrigo e que tenho andado a mendigar pelas ruas, nunca me aconteceu receber de uma só vez uma maquia tão grande. Ainda por cima, deixada por alguém que está nas mesmas condições.
- São coisas minhas – disparou o carteiro, com rispidez. O mendigo não se importunou e insistiu:
- Como assim? Como explicas que tenhas estado a pedir desde manhã cedo e me tenhas deixado o teu pecúlio?
- Como sabes que estive a pedir desde cedo?
- Quando vim para este lugar, espreitei ali na esquina e reparei que estavas lá sentado.
- Seja. Mantenho o que disse: são coisas minhas, foi isso que me levou a prescindir das esmolas angariadas, deixando-as em tua posse.
- Tu não és daqui, pois não? Noto no teu sotaque...
- Certo. Sou de muito longe. Ando por aí, errante. Hoje estou em Vancouver, mas não sei onde estarei amanhã.
- És nómada?
- Sim.
- Por necessidade?
- Por opção.
- E hoje decidiste personificar um pedinte...
- Como sabes isso? Porque te deixei as esmolas que me deram?
- Não.
- Agora sou eu que estou curioso...
- Porque ontem vi-te na rua, à minha frente. Vi como demoraste a olhar para mim. Tenho boa memória. Pode parecer que estou ausente, que não dou importância às pessoas que passam na rua, mas é só para efeitos de encenação. A minha boa memória disse-me que ontem não parecias um pedinte.
O carteiro sabia que o disfarce tinha sido descoberto. O mendigo não estava tão interessado em agradecer a liberalidade das esmolas depositadas na sua caneca metálica. Queria saber o resto. Se o carteiro entrou para a conversa de pé atrás, mais por causa do seu ignóbil fingimento do que por ter de lidar com o mendigo, agora estava hipotecado por uma atarantação desmedida. Não sabia o que dizer. A sua máscara já não fazia sentido. Desviou o olhar para o lado contrário. Apetecia-lhe sair daquele lugar, mas não conseguia levantar-se. Não entendia porquê. Não conhecia o mendigo. Nada o impedia de se levantar intempestivamente, sem sequer dizer adeus, ou qualquer outra palavra de circunstância. Mas estava sitiado por algo que impedia de atuar desse modo. Talvez fosse o peso dos remorsos e o mendigo, ali ao seu lado, corporizasse o ultraje que sentia ter cometido sobre todas as pessoas que estão no mesmo estado de necessidade. O silêncio já demorava, quando o mendigo voltou a falar:
- Não tens de dizer mais nada. Eu respeito o teu silêncio. Nem sabes como respeito o teu silêncio...
- O que dizes?
- Vou-te confessar um segredo: eu também não sou um pedinte genuíno. Não preciso das esmolas para viver. Julgo que estamos na mesma situação: fingimos ser mendigos.
- Não me digas!
- Assim é.
- O que te levou a simular a condição de mendicidade?
- Dir-te-ei. Primeiro serás tu a revelar as intenções. Depois, será a minha vez.
- Considero justo. Assim como assim, tu é que descobriste o meu fingimento. Não o conseguia fazer em relação a ti. E, como sabes, ontem observei-te com vagar.
- Diz-me, pois: o que te levou ao fingimento de um pedinte?
- Tu.
- Não entendo.
- Ao ver-te ontem, senti uma súbita necessidade de estar por dentro de um mendigo. Queria perceber o que sente um mendigo quando está de mão estendida à espera da misericórdia dos outros. Queria saber ao que sabe a humilhação do despojamento e de uma pessoa expor a sua miséria aos olhos dos outros. Queria sentir um módico de fome. Com tudo isto, quis desafiar a indiferença que fora latente em toda a minha vida pretérita, a indiferença pela pobreza em que medram os outros. Tu deste o mote. Desculpa, foste o fósforo que desatou a chama desta encenação. Espera: já te devo pedir desculpa, pois também não és mendigo.
- Não tens de te desculpar. Nem tinhas de te desculpar se eu fosse um genuíno pedinte. Às vezes, temos de usar os outros para testarmos os nossos limites. Menos mal será se os outros que assim forem usados não sofrerem danos. Só que, por vezes, não se pode evitar esses danos.
- O que te trouxe a estes preparos?
- Coisa parecida, mas com outra dimensão. Sou investigador. Faço ciência sobre assuntos relacionados com a pobreza. Senti que devia colocar-me na posição de um mendigo para aproximar o meu laboratório de ideias das condições que retratam a crua realidade.
De seguida, o mendigo que também o não era estendeu a mão na direção do carteiro que também fez de conta que era mendigo. Dentro da mão fechada estavam as moedas e a nota recolhidas pelo carteiro durante a sua efémera mendicidade.
- Isto pertence-te. Nem sei se precisas mais do que eu...
O carteiro, ainda incomodado com a sua soez encenação – de nada valendo perceber que não tinha faltado ao respeito ao mendigo que lhe dera o mote, pois não era mendigo – levantou-se de repente, sem dizer uma palavra, sem aceitar o que o investigador-mendigo retinha dentro da mão, e fugiu dali para fora.  

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