Iggy Pop, “Sunday”, in https://www.youtube.com/watch?v=tjSnrDikc4M
O carteiro ensaiava o caminho de
regresso a casa quando ouviu um murmúrio atrás de si:
-
Não vás embora. Não vás embora!
Era o mendigo que se desprendera do
olhar ausente, da sua impassibilidade, e queria conversar com o carteiro. Esteve
parado algum tempo, enquanto o mendigo repetia a solicitação e a enfatizava com
o acenar da mão que convidada a sentar-se ao seu lado. O carteiro hesitou. Não estava
seguro se devia juntar-se ao mendigo. A dúvida não era pelo mendigo; era por
si, por estar incomodado com a frivolidade daquele dia, quando, sem pensar duas
vezes sobre o assunto, tomou as rédeas da simulação de um mendigo. Continuava revoltado
consigo mesmo: como fora possível prestar-se a tal papel? Como fora possível
ultrajar as pessoas que são genuínos mendigos? Mas o mendigo repetia o pedido,
adicionando um humilde “por favor, por
favor”, desviando o olhar, que estivera tanto perdido no horizonte sem
balizas, para os olhos do carteiro. Por fim, o carteiro decidiu-se e deu passos
vagarosos, a medo, em direção do mendigo.
-
Senta-te ao pé de mim. Não tenhas medo. Queria falar contigo, só por algum
tempo.
O carteiro correspondeu ao pedido do
mendigo. Arranjou lugar próximo da desarrumação, com o cuidado de não se chegar
à miscelânea de haveres sujos. A sua compulsiva mania pela higiene foi
subitamente resgatada das catacumbas da memória. Ou era o remorso que o constrangia,
deixando-o sem à-vontade para enfrentar o verdadeiro mendigo.
-
Obrigado! Obrigado por me teres deixado estas moedas e esta nota. Foste muito
gentil.
-
Ora essa...hum...não custou nada...
– ripostou o carteiro, atrapalhado, sem saber ao certo o que dizer, com a lucidez
de saber que naquele momento o seu aspeto exterior pouco diferia do mendigo
genuíno.
-
Devo confessar que fiquei admirado, até perplexo. Neste tempo que levo de
sem-abrigo e que tenho andado a mendigar pelas ruas, nunca me aconteceu receber
de uma só vez uma maquia tão grande. Ainda por cima, deixada por alguém que está
nas mesmas condições.
-
São coisas minhas –
disparou o carteiro, com rispidez. O mendigo não se importunou e insistiu:
-
Como assim? Como explicas que tenhas estado a pedir desde manhã cedo e me tenhas
deixado o teu pecúlio?
-
Como sabes que estive a pedir desde cedo?
-
Quando vim para este lugar, espreitei ali na esquina e reparei que estavas lá
sentado.
-
Seja. Mantenho o que disse: são coisas minhas, foi isso que me levou a
prescindir das esmolas angariadas, deixando-as em tua posse.
-
Tu não és daqui, pois não? Noto no teu sotaque...
-
Certo. Sou de muito longe. Ando por aí, errante. Hoje estou em Vancouver, mas não
sei onde estarei amanhã.
-
És nómada?
-
Sim.
-
Por necessidade?
-
Por opção.
-
E hoje decidiste personificar um pedinte...
-
Como sabes isso? Porque te deixei as esmolas que me deram?
-
Não.
-
Agora sou eu que estou curioso...
-
Porque ontem vi-te na rua, à minha frente. Vi como demoraste a olhar para mim. Tenho
boa memória. Pode parecer que estou ausente, que não dou importância às pessoas
que passam na rua, mas é só para efeitos de encenação. A minha boa memória
disse-me que ontem não parecias um pedinte.
O carteiro sabia que o disfarce tinha
sido descoberto. O mendigo não estava tão interessado em agradecer a
liberalidade das esmolas depositadas na sua caneca metálica. Queria saber o
resto. Se o carteiro entrou para a conversa de pé atrás, mais por causa do seu
ignóbil fingimento do que por ter de lidar com o mendigo, agora estava hipotecado
por uma atarantação desmedida. Não sabia o que dizer. A sua máscara já não
fazia sentido. Desviou o olhar para o lado contrário. Apetecia-lhe sair daquele
lugar, mas não conseguia levantar-se. Não entendia porquê. Não conhecia o
mendigo. Nada o impedia de se levantar intempestivamente, sem sequer dizer adeus,
ou qualquer outra palavra de circunstância. Mas estava sitiado por algo que
impedia de atuar desse modo. Talvez fosse o peso dos remorsos e o mendigo, ali
ao seu lado, corporizasse o ultraje que sentia ter cometido sobre todas as
pessoas que estão no mesmo estado de necessidade. O silêncio já demorava,
quando o mendigo voltou a falar:
-
Não tens de dizer mais nada. Eu respeito o teu silêncio. Nem sabes como
respeito o teu silêncio...
-
O que dizes?
-
Vou-te confessar um segredo: eu também não sou um pedinte genuíno. Não preciso
das esmolas para viver. Julgo que estamos na mesma situação: fingimos ser
mendigos.
-
Não me digas!
-
Assim é.
-
O que te levou a simular a condição de mendicidade?
-
Dir-te-ei. Primeiro serás tu a revelar as intenções. Depois, será a minha vez.
-
Considero justo. Assim como assim, tu é que descobriste o meu fingimento. Não o
conseguia fazer em relação a ti. E, como sabes, ontem observei-te com vagar.
-
Diz-me, pois: o que te levou ao fingimento de um pedinte?
-
Tu.
-
Não entendo.
-
Ao ver-te ontem, senti uma súbita necessidade de estar por dentro de um
mendigo. Queria perceber o que sente um mendigo quando está de mão estendida à
espera da misericórdia dos outros. Queria saber ao que sabe a humilhação do
despojamento e de uma pessoa expor a sua miséria aos olhos dos outros. Queria
sentir um módico de fome. Com tudo isto, quis desafiar a indiferença que fora
latente em toda a minha vida pretérita, a indiferença pela pobreza em que medram
os outros. Tu deste o mote. Desculpa, foste o fósforo que desatou a chama desta
encenação. Espera: já te devo pedir desculpa, pois também não és mendigo.
-
Não tens de te desculpar. Nem tinhas de te desculpar se eu fosse um genuíno
pedinte. Às vezes, temos de usar os outros para testarmos os nossos limites. Menos
mal será se os outros que assim forem usados não sofrerem danos. Só que, por vezes,
não se pode evitar esses danos.
-
O que te trouxe a estes preparos?
-
Coisa parecida, mas com outra dimensão. Sou investigador. Faço ciência sobre
assuntos relacionados com a pobreza. Senti que devia colocar-me na posição de
um mendigo para aproximar o meu laboratório de ideias das condições que
retratam a crua realidade.
De seguida, o mendigo que também o não
era estendeu a mão na direção do carteiro que também fez de conta que era
mendigo. Dentro da mão fechada estavam as moedas e a nota recolhidas pelo carteiro
durante a sua efémera mendicidade.
-
Isto pertence-te. Nem sei se precisas mais do que eu...
O carteiro, ainda incomodado com a
sua soez encenação – de nada valendo perceber que não tinha faltado ao respeito
ao mendigo que lhe dera o mote, pois não era mendigo – levantou-se de repente,
sem dizer uma palavra, sem aceitar o que o investigador-mendigo retinha dentro
da mão, e fugiu dali para fora.
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