30.4.18

Quando apetece acreditar nos homens


Parquet Courts, “Normalization” (live at KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=jESSg24szAo
Nem tudo é mau como parece. Às vezes, uma centelha irrompe entre a monótona ditadura das sombras. Pois há gente com um acesso de ousadia que rompe com a desconfiança, o espetro da destruição, o metódico aviltar do outro, a intolerância desbragada. Descobre-se que não faz sentido manter inimigos imorredoiros. Não faz sentido arregimentar exércitos em fileiras pré-bélicas, atirando os povos uns contra os outros, atirando-os para o desassossego permanente. Tudo isto nunca teve razão de ser, a não ser a motivada pelo espartilho das ideias que se emprestam à impossibilidade da conciliação.
Quando somos testemunhas de um começo de diálogo entre povos hostis, apetece exaltar a grandeza dos homens que se predispõem ao entendimento. Apetece meter um parêntesis no metódico pessimismo antropológico para saudar a humanidade. Ao sermos espetadores de um singelo aperto de mãos entre os líderes das duas Coreias, apetece erguer um copo de vinho (mesmo que as imagens coincidam com o pequeno-almoço) e celebrar a audácia que se desembaraça da mudez estabelecida.
O espaço de análise (nos governos, na comunicação social e na academia) estará enxameado por especialistas que terçam cenários, servindo-se de oráculos a que deitam os dedos ávidos de adivinhação para reformularem o módico de desconfiança abraçado ao incorrigível pessimismo. Julgo que estou à vontade para os denunciar: também medro na terrível desconfiança da humanidade e tenho uma leitura da história reveladora da pulsão autofágica que não honra os pergaminhos da racionalidade que os antropocêntricos reclamam para si mesmos, em oposição aos ditos “animais não racionais”. Nesta altura, não alinho com os analistas que insistem em tresler os acontecimentos. Não me interessa saber a cor do futuro. Não me interessa olhar de esguelha para o começo de conversa entre os líderes coreanos. Não me interessa desconfiar de um ato que pode matar a desconfiança. Não me interessa esquadrinhar o calculismo dos políticos e dos militares, de como decaem para jogos de sombras e labirínticas manobras que antecipam as jogadas do adversário, tudo para descrer nas negociações que podem, enfim, trazer a reconciliação de dois povos artificialmente separados há seis décadas. 
Só me interessa o gesto de boa vontade dos líderes das duas Coreias. E a promessa de desnuclearização das Coreias. Quero ver o que dizem os advogados de defesa da ordem internacional baseada numa falsa concórdia, os mesmos que insistem em denunciar os “Estados párias” pela incerteza que a eles imputam. Em confirmando-se futuramente o entendimento entre as duas Coreias, talvez sobre para outros o papel de párias – justamente aqueles que fazem repousar o seu papel de dominação mundial em arsenais nucleares, os que insistem em provar a estultícia humana.
Mas nada disto tem relevância ao pé das imagens que inauguraram a manhã daquela sexta-feira, 27 de março de 2018. Poder-se-á advertir que é extemporânea a minha exultação, que temos de esperar pelo futuro para saber onde desaguaram as negociações. Oxalá a boa vontade tenha apenas começado naquela sexta-feira, 27 de março de 2018. E, oxalá também, seja o precedente para outros que desonram a humanidade, e que estão no púlpito da responsabilidade por liderarem povos, aprenderem que a vida não frui da inimizade.

27.4.18

Queres um bom nome, ou um nome bom?


Sufjan Stevens, “Visions of Gideon”, in https://www.youtube.com/watch?v=UiICPJXgWFU
Não é homonímia. Um bom nome não é um nome bom. Anda toda a gente sobressaltada por desconfiar de um assalto algures ao seu bom nome. Socorrem-se de fátuos adágios populares para defenderem a honra de um nome ultrajado: “quem não se sente, não é filho de boa gente”, protestando muita indignação. Não podem contrariar a maré engrossada que depende da vontade dos outros – dos outros que, justamente, dirigem insultos que enodoam um bom nome. Julgo poder dizer-se que, na maior parte dos casos, os atentados à honra de um nome não chegam a ser do domínio público; ficam escondidos em elucubrações que não se traduzem em palavras que cheguem ao conhecimento do ofendido. 
(Quem toma conhecimento que, no meio do trânsito caótico da cidade em hora de ponta, um anónimo condutor de um automóvel lhe dirige fecundo impropério?)
Quem pode garantir ter um bom nome, impoluto aos olhos dos demais? Ninguém. E eu digo: ainda bem. Mal seria se, em relação aos nomes, toda a gente concordasse. Vale para os que se agigantam perante a ilusão de seu bom nome, como é válido para os nomes ostensivamente depreciados pela multidão. Folgue-se saber que há gente com punhos rendilhados que diligencia o seu melhor para exteriorizar (e fazer respeitar como tal) um bom nome, mas que não é credora do louvor aos olhos de outra gente. E folgue-se saber que nem os (assim entendidos) defenestrados têm seu mau nome selado pela opinião de toda a gente.
O olhar está de viés, neste assunto do bom nome. A ordem das palavras está trocada. Em vez de as pessoas andarem em pleitos sucessivos quando enquistam ultrajes ao seu bom nome, continuando uma demanda inútil pelo reconhecimento de seu bom nome, deviam baixar a guarda. E contentar-se-iam em saber que é um nome bom o que trazem a tiracolo no úbere da identidade. Mesmo isso, não garante consensual observação. Quem ambiciona o bom nome como meta de reconhecimento público, entroniza-se átomo centrípeto, como se tudo fosse contingente a si. Por maior que seja a safra que consola pergaminhos, não conseguem alcançar tal reconhecimento – ou por indiferença de muitos, ou por recusa de tantos outros. Os que se contentam com um nome bom são mais modestos e ensimesmam a fortuna que consideram o lastro de um nome bom. É para consumo interno, como se as portas da consciência estivessem constantemente abertas e o pecúlio do nome bom fosse a caução da sua integridade. 
Os que exibem, com visível ostentação, um bom nome, são aves vaidosas que se esbatem na efemeridade da sua presença na paisagem dos tempos. Os que se contentam com um nome bom são seus próprios juízes, recusando entregar a empreitada nas mãos de quem, por ser alguém na sua exterioridade, é tripulante da indiferença.

26.4.18

A hipoteca dos sentidos


Tears for Fears, “Mad World”, in https://www.youtube.com/watch?v=u1ZvPSpLxCg
Falamos dos sentidos – do mal que eles fazem. Aceitamos que há outros sentidos, os que merecem tributo pelo bem que irradiam. Inteiramo-nos dos maus sentidos. Como os podemos evitar. Ou, em não sendo possível a fuga, como dissolver os seus efeitos corrosivos. Podemos sobrepor as fronteiras desses sentidos através de um fogo de sentido contrário, um contrafogo com a virtude de apagar o fogo que se traduz em consumições. E se o contrafogo asfixiar o sentido mau, sua fonte original, e tomar de assalto até as sombras sadias que passam pelo crivo da indiferença? 
Não é bom critério. Não podemos ter a soberba de dominar o à partida indomável, acelerando a angústia que sobra da medida preventiva. Temos de anuir que melhor seria dar o peito às dores causadas pelo sentido desaprovado. Em contraproposta, critério diferente: a hipoteca dos sentidos. Dirão: é um mero ardil, o fingimento que passa de esgueira tentando convencer o corpo que um mau sentido nele não logrou encontrar cais para amarrar sua pútrida âncora. Se for apenas um fingimento, o mal perdura. Com a agravante de fazermos de conta que a pele não alberga as cicatrizes inerentes. Entrar em negação não parece remédio.
Contrapõe-se: não é disso que cuida a hipoteca dos sentidos. A melhor metáfora é a anestesia. Como nas cirurgias, são invasivas, mexem e remexem no interior do corpo, em agressões todavia necessárias para extirpar mal de outra dimensão. E enquanto as entranhas são cuidadosamente vistoriadas pelos peritos, cumprindo um roteiro que tem a nota promissória da cura posterior, as agressões ao corpo não causam dor. Não se faz de conta que a invasão não aconteceu; apenas se suspende o tempo, como se no período da anestesia o corpo estivesse à margem das maldades que sobre ele são praticadas com o beneplácito dos peritos.
Há sentidos com esta linhagem. Sentidos que exigem a recusa da navegação. A hipoteca dos sentidos é o metódico arranjo que prepara o corpo para o acerto com a narração dos sentidos compulsados no lugar da desconfiança. Os que não têm serventia, ficam arredados do palco onde se jogam, depois da intermediação da hipoteca dos sentidos. 
Empreitada mais árdua é distinguir os sentidos com direito de admissão dos sentidos destinados à hipoteca. Às vezes, a fronteira que os delimita é volúvel. Não se sabe se não é mal maior quando se destinam à hipoteca sentidos que irradiam bem.

25.4.18

A minha liberdade vale mais do que a liberdade dos outros?


The The, “Slow Emotion Replay”, in https://www.youtube.com/watch?v=yW0ltw7fsdI
Não, a liberdade não pode ser um fiasco. Pode ser uma empreitada vultuosa, com um comprimento de onda variável, os seus limites testando-se nos diferentes entendimentos que fazemos da liberdade, na ordem de grandeza em que admitimos os limites da liberdade. Trata-se de um conceito complexo e de um valor simples, ao mesmo tempo – a liberdade, rica por encerrar em si um paradoxo que, por sua vez, a enriquece ainda mais. 
A intersubjetividade da liberdade dá o mote à sua riqueza. Somos livres e da liberdade temos diferentes entendimentos. Há uma constelação de significados e de práticas, quando se invoca o valor da liberdade. Quem ama a liberdade entroniza-a como valor superior. Não admitimos que haja entorses à nossa liberdade e devemos estar de atalaia para que a liberdade dos outros não seja atropelada. Já como conceito, levantam voo as dificuldades intrínsecas à moldura subjetiva que quadra com a liberdade.
Quando um comunista usa a liberdade como palavra de ordem, o conceito remete para um significando se for usado por um liberal, por um social-democrata, ou por um democrata-cristão. A grandiloquência da liberdade é arrastar consigo, como asa imperativa e vigilante sobre os por ela tutelados, a tolerância. Os não-comunistas não se podem incomodar quando um comunista adoça o discurso com repetidas evocações da liberdade; nem podem resgatar da História os atentados que regimes comunistas praticaram sobre a liberdade – e, menos ainda, hipostasiar sobre um oráculo, assegurando que se os comunistas tivessem a mão no poder, começariam por reprimir a liberdade. (Até prova em contrário, que não se admite que possa ser o cadastro passado.) Não podem, os não-comunistas, atirar o opróbrio da restrição da liberdade aos comunistas, nem lhes podem negar o uso do vocábulo (como referente de um conceito). Ao fazê-lo, atraiçoam o valor fidedigno da liberdade que é a tolerância. Por maioria de razão, os comunistas não podem obter o uso exclusivo da liberdade.
Da liberdade também não se expulsam os fascistas e outros populistas que navegam com o estribilho do totalitarismo à vista. Quem defende a liberdade não a pode restringir a quem dela não se manifesta zelador. Seria um contrassenso, um punhal cravado na própria carne pelos tutores da liberdade, eles afinal os primeiros a negarem o significado do valor de que se dizem guardiães. 
O que leva à questão excruciante, a questão que, por vezes, mostra como na ação levita a tendência para decairmos no contrário do proclamado: a minha liberdade tem mais valor do que a liberdade dos outros? Não podemos transigir os entorses à liberdade dos outros; ao fazê-lo, a nossa própria liberdade fica hipotecada. Se o princípio não se limitar aos confins da teoria, à pergunta formulada segue-se resposta negativa: a liberdade dos outros vale tanto como a minha liberdade. Só duvido que, em casos-limite, ou em casos avocados como “circunstâncias excecionais” para justificar parênteses na liberdade, a equivalência subjetiva da liberdade fique esquecida numa conveniente prateleira de desmemória, ou refém da sua oportunista reconfiguração disfarçada de retórica de fraca linhagem. 

24.4.18

Eu era o desdenhado


Ezra Furman, “Lousy Connection”, in https://www.youtube.com/watch?v=fvfI6Q5WFT0
Já devia ter aprendido: as pessoas aspiram a julgar os outros, porque é fora de si que se sentem como peixes na água. Ele há sentenças para todos os gostos. Muitas. Confirmando, em paradoxal movimento, que os outros é que são o inferno, mas só ocupam este pedestal se primeiro cativarem a atenção de outros que sobre os outros exteriores a si se pronunciam com autoridade de um juiz. 
Já devia ter aprendido a não dar ouvidos às lapidares sentenças que desaprovam comportamentos ou escolhas nos deslimites dos julgadores. São pródigos em contundentes juízos de valor quando os comportamentos ajuizados se prestam à dissidência, rompendo com as convenções de que os julgadores reclamam ser diletos guardiães. Era o caso da rapariga que trocou o amado por outro. Os julgadores não perdoaram a insídia. Sobre os laços abençoados divinamente impende um dever de conservação perene. Quem for acusado de os romper, incorre na severa punição decretada por juízes. Quase sempre, através da “censura moral”, uma poderosa arma que destrói a probidade de quem arrosta com a acusação. Ainda por cima, a menina cometeu o topete de trocar o amado por um de manifesta pior cepa. As pessoas, incrédulas, assinalavam a gravidade da troca: não podia ser, terá sido como se um terramoto tivesse lambido as famílias (dos antigos amantes); e que, em manifesta adversidade, o novo eleito pela menina estouvada era de pergaminhos inferiores. As pessoas protestavam: como era possível trocar tão bom e respeitável rapaz por outro habituado a ser transgressor das convenções, sem pergaminhos recomendáveis, de uma fealdade anotada, penhor de ideias lamentáveis, um provocador nato que se ufanava de sulcar maré oposta à das convenções assinaladas?
A menina e o novo amado eram indiferentes ao burburinho, ao clamor, aos dedos acusadores dos juízes que se nomearam a si mesmos juízes. Se fossem a tribunal de cada vez que um dos dedos acusadores se erguesse, passariam os ossos por milhares de tribunais e seriam condenados sumariamente por todos eles. No final, seriam compelidos a cumprir punição multiplicada à razão de todos os que notaram um lampejo de legitimidade para decretarem verdades irrefutáveis sobre um episódio de vidas alheias.
Não aprendia com nada disto. E dei comigo, repentinamente, no lugar do rapaz desdenhado, o alvo de todos os vitupérios, o biltre incorrigível, o truculento irascível, o não recomendável para o dote das donzelas. Afinal, já tinha aprendido tudo. À medida que os julgamentos intuíam o meu escalpe, apurei a dissidência. 

23.4.18

Porque tenho uma pança maior


Kidd Funkadelic, “Maggot Brain” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=3aAzdHnYfuk
Os arcaboiços não se prestam à discussão. Não são mortiços enfeites que autorizam a usura dos outros. A estética é contrafação. Na volta da maré, sobrepõe-se a força do arcaboiço, que vence no braço de ferro. Um argumento de autoridade.
Porque tenho uma pança maior: demande-se o arbitrário respeito, ou o arcaboiço como arma de arremesso é possível e os atingidos não recuperam em bom estado. O arcaboiço devolve a purulenta impaciência e a força substitui-se como argumento de autoridade. A minha pança maior exige anuência dos demais, dos que têm pança menor e dos sem-pança, assim diminuídos na sua condição menor. Esqueçam-se dos burgueses trejeitos, transfigurados de juízos estéticos: a pança maior não é inestética. Porque é minha e assim o decreto.
Porque tenho uma pança maior, assusto os outros. Suponho que se amedrontam com a possibilidade de atirar as adiposidades excessivas contra eles, como força bruta, irrebatível. E ai se eles segredarem gracejos sobre a minha condição, que levam com a pança maior e com um punho fechado no sobrolho. Não interessa a lição sobre a paz e como a paz não tolera manifestações de violência. A pança maior atira-se contra as aleivosias dos oponentes e isto não é violência: é uma oportunidade que não se pode gastar no vazio. 
Há quem diga que me respeitam não pelos argumentos de autoridade mas pelo temor de serem vítimas da pança maior. Concordo. Não me importam os argumentos de autoridade, a não ser que sejam fruídos após o esbofetear com a pança maior; é quando a pança maior passa a argumento de autoridade. Uma vingança servida aos apoderados da estética estéril. Cada um serve-se das armas que estão à mão. Se vítima me encontro da perseguição estética, reajo com a pança maior, virando o jogo do avesso: é a pança que me trai no conciliábulo da estética (assim vulgarizada), é a pança que sirvo de vingança para os que descaem no ultraje. 
Porque a minha pança é maior, não fico condenado à decadência. Nem sou refém de dietas, nem cobaia da ostensiva privação de prazeres. Julgo que é mais por este motivo que me temem. Não tenho nada a perder. Nem o meu doentio colesterol, ou os riscos que pesam sobre a minha vida (como presságio de morte), me intimidam. Sei que todos vamos para a morte. Uns, com a vantagem da pança maior, autêntica arma de destruição maciça da inveja dos dietéticos, e de fruição de deleites. Mas vou abraçado aos prazeres que me apetece, não me sendo negado este hedonismo vivaz em sua duração. 
Pobres dos outros, que têm medo da minha pança maior e inveja de não poderem ir para a sepultura de barriga cheia dos prazeres que se proíbem.

20.4.18

Fora de serviço


Idles, “Divide and Conquer”, in https://www.youtube.com/watch?v=P4SAIOp7Q3U
Lá fora, a população inteira conspirou num emudecimento ensurdecedor. As ruas estão molhadas e não consta que tenha chovido nos últimos tempos. As pessoas seguem todas sob as suas capas impermeáveis e, todavia, o dia está soalheiro, dir-se-ia, estival a destempo. Se forem consultados os registos, a população tem razões para protestar ruidosamente contra o estado de coisas. E, contudo, deixou-se intimidar por um silêncio tonitruante. Como se estivesse embebida numa hibernação sem sentido, ou anestesiada contra os efeitos do tempo. Como se as pessoas fossem desprovidas de espírito crítico e a sua mudez fosse o exercício metódico de indulgência perante o estado a que as coisas chegaram.
Lá fora, os autocarros que passam exibem todos o dístico “fora de serviço”. Não se fez chegar ao conhecimento que estejam em greve. A esta que é hora de ponta, os autocarros deviam ostentar um dístico que revelasse o destino. Deviam transbordar de passageiros. O efeito é ainda mais paradoxal: nas paragens dos autocarros, as filas amontoam-se. Não há greve os autocarros já não param há algum tempo nas paragens. Estão “fora de serviço”. Como “fora de serviço” está a multidão que continua emudecida, nem sequer protestando contra o tumulto causado pela anomalia nos transportes públicos.
Lá fora, arruma-se o lixo num canto, descuidadamente. Ninguém conta com o vento que se pode descompor a qualquer momento, desarranjando as sobras entretanto acantonadas. Depois, os funcionários dos serviços camarários serão, arrumando outra vez, mas descuidadamente, o lixo num canto qualquer. Sem a diligência de o protegerem do futuro vento que possa conspirar contra a limpeza da cidade. Por dentro da apatia geral, a população emudecida passa pelos despojos do lixo, depois de um vento conspirativo o ter desarrumado, e mantém-se em silêncio. A imundície que tomou conta das ruas da cidade não transtorna a população inteira. 
Lá fora, os cães vadios saciam a fome entre o restolho desordenado. Um recipiente contendo sobras de um restaurante veio parar a meio da avenida. Três cães vadios estacionam no meio da avenida, indiferentes aos carros que percorrem constantemente a avenida. Os cães banqueteiam-se. Os carros evitam os cães, mecanicamente; não por serem os seus proprietários sensíveis à causa animal, mas por não quererem estragar os carros (os cães são de grande porte). Um grupo de cães mais numeroso alivia as bexigas em restos de lixo espalhados à frente de um jardim público. A multidão em redor, militante em seu silêncio, é indiferente à alcateia, ao lixo atamancado que afeia a cidade, à displicência dos funcionários camarários, ao estado a que as coisas chegaram, a tudo.  
Cá dentro, resisto aos desafios excruciantes. Fecho as janelas todas. Há dias em que é preferível ficar escondido nas muralhas que são a casa.

19.4.18

Corre atrás de ti mesmo


Iceage, “Painkiller”, in https://www.youtube.com/watch?v=qP8GJj8lAI8
Não é bom sintoma todo aquele tempo em que ficas sitiado pelo marasmo. Pois o tempo viaja no seu pesar e não fica à tua espera. Não digo que terás de apressar a vivência, pois o lugar-comum (apesar de ser lugar-comum) é acertado e não há quem faça bem as coisas se elas forem feitas velozmente. 
O paradigma é diferente. Às vezes, resulta sair de nós mesmos com o fito de nos contemplarmos a partir do exterior. Quase sempre, a mesmice, quando somos posto de observação que intui a existência, tem o viés do preconceito ou da parcialidade: ou somos infalíveis, ou somos da pior espécie que a espécie humana conhece. Não digo que o meio-termo seja pedagogia fidedigna. Cada um escolhe os termos em que deita a existência. O que digo, é que se não nos desprendermos das peias que habitam por dentro de nós não temos a imparcialidade para sabermos o que somos. E, às vezes, convém olhar de frente o horizonte que se encerra no seu ocaso, abrir o céu com as próprias mãos, por algum sangue que seja derramado, para ver o lugar que nos pertence. 
Por isso, corre atrás de ti mesmo. Primeiro, tens de ser tu começar a corrida. Depois, desliga-te de ti mesmo, deixa esse eu-em-observaçãocomeçar a corrida e desata tu próprio, o eu-que-observa-o-eu-em-observação, a correr em tua perseguição. Não é perseguição por perseguição, no sentido adverso da palavra. É apenas para mapear o chão calcado na demanda atlética, para tentar compreender como da demanda se soerguem os rudimentos do teu ser. Uma vez na esteira do eu-em-observação, terás, enquanto eu-que-observa-o-eu-em-observação, de reconhecer um paradoxal efeito: terás de simular que és pessoa diferente do eu-em-observação, mesmo sabendo que nem o metódico desprendimento de ti mesmo consegue apagar o rasto do eu que puseste em observação. Conseguirás, então, ler o eu-em-observação. Será a tua vez, do eu-que-observa-o-eu-em-observação, de rematar com as conclusões possíveis. Poderás não gostar do que te foi dado a apreciar. Poderás sentir orgulho do eu-em-observação– termos em que dúvidas poderão surgir quanto à exigível imparcialidade do exercício. Poderás ser indiferente, na dedução de te achares um estranho por dentro de ti mesmo.
Para ver o lugar que nos pertence: olhar de frente, desassombradamente, o horizonte que nos alberga. Não se insinua que é necessariamente um lugar diferente. Pode ser o mesmo lugar. Mas, às vezes, entre a constelação de dúvidas que medram na cognitiva parada em que nos situamos, convém açambarcar um módico de certeza. Não é líquido que o consigamos partindo de dentro de nós. Por isso, corre atrás de ti mesmo.

18.4.18

Fábrica dos sonhos


Peter Hook & the Light, “Dreams Never End” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=D_4gA_a8cDY
Todos tinham inveja (uma inveja das boas) dos operários da fábrica dos sonhos. Mas ninguém conhecia os operários da fábrica dos sonhos. Não tinham rosto. Não tinham nome. E, no entanto, a eles cabia inventariar os sonhos e dar-lhes seguimento. 
As pessoas perguntavam-se: como é feita a distribuição dos sonhos? A voz corrente fazia constar que a distribuição era fortuita. Era como se dentro da fábrica dos sonhos houvesse uma lotaria de imensas proporções dividida em duas metades assimétricas: uma com os nomes de todas as almas vivas, a outra com os sonhos a repartir. Alguém teria a função de dar à roda. A alguém seria atribuída a incumbência de extrair os talões e seus canhotos, respetivamente, os nomes das almas vivas e os sonhos que calhavam em sorte (ou não tanto, em tratando-se de pesadelos, ou de sonhos irrelevantes, ou de sonhos sem expressão na avaliação subjetiva que deles era feita). 
As pessoas discutiam seus sonhos, quando deles se lembravam. Levavam a sério a função. Também havia os que não os confessavam em público, talvez por serem inconfessáveis. Pois os sonhos cuidavam de todas as matérias sensíveis para a existência, eram um laboratório de experiências que uma pessoa já viveu ou pode viver na carne, com a diferença de uns ajustes frequentemente surrealistas para emprestar toda a vivacidade típica da matéria onírica. Dos sonhos inconfessáveis fazia parte a luxúria. O pudor herdado da repressão religiosa cuidava de asfixiar a contagem dos sonhos lúbricos. A exceção era um punhado de irreverentes que espumavam deleite só por trazerem a matéria sonhada da arrecadação dos sonhos. 
Algumas pessoas eram recompensadas pela sorte grande. Era quando o sonho sonhado se transfigurava em matéria vivente e era tangível às suas mãos – e quando o sonho, ainda matéria sonhada, era uma promessa em forma de oásis, com o selo da manifesta impossibilidade. Nessa altura, as pessoas interiorizavam que a fábrica dos sonhos não era uma conjura, era uma lotaria com a escassa probabilidade estatística de conferir graças a uma amostra representativa de almas. Os felizardos tornavam-se embaixadores da fábrica dos sonhos. Não podiam cometer a ingratidão da recusarem a sinecura. Passavam o resto do tempo a tentar convencer os incrédulos e os desiludidos que a fábrica dos sonhos podia ser a mudança de maré de que estavam à espera. Davam o seu exemplo. Mas a fábrica dos sonhos continuou ancorada na lei das probabilidades exíguas. Muitos dos desiludidos acusavam deus de semelhante iniquidade e alistavam-se nas fileiras dos incréus, desacreditando deus e desapossando-o das suas almas.
Porém, um numeroso exército de almas vivas perseverava. Continuavam a sonhar com os sonhos que consideravam certos, com um idílico lugar onde a perfeição seria seu nome. Por dentro da fábrica dos sonhos, procuravam viciar os sonhos a preceito das ambições. Fracassaram. Nunca se conseguiu apurar a identidade dos operários da fábrica dos sonhos. A corrupção dos sonhos encalhou nas muralhas da fábrica dos sonhos.

17.4.18

Âncora levantada


Conan Osíris, “100 Paciência”, in https://www.youtube.com/watch?v=dQKKXqVaNEo
A este respeito, dizia ser o provir a feição da tatuagem que em seu corpo teria lugar. Não seria bota-de-elástico ao recear a tatuagem. Uma expressão extemporânea – dir-se-ia, não fossem tão vulgares tatuagens seladas em gente mais velha. Para o que interessava, não interessava o senso-comum, nem as sentenças emolduradas pelos demais, nem sequer os outros que se congeminassem como exemplo (ou antítese de exemplo). 
O cabaz das decisões estava tomado pelo convencimento da insensível exterioridade. Só queria levantar âncora do fundo lodoso e partir, sem destino assinalado em cartografia apurada. Mas a âncora era pesada. E estava anquilosada pela ferrugem do tempo, denotando o tempo demorado no fundo, entre o limo imorredoiro e as rochas vetustas e os peixes ocasionais como testemunhas da letargia enraizada. A vontade mudou sem a ajuda do vento: foi um movimento intrínseco, um repentinoarrematar de um olhar que suplicava as águas diferentes, exigindo que a âncora deixasse de ser esteio da apatia. 
Alguém, emergindo da muralha do conservadorismo, protestou: “por que é preciso mudar o que existe?” Não deu ouvidos. Os espasmos circenses dos conservadores são risíveis, matéria infecunda que dimana dos que se amedrontam com um laivo de transfiguração do lugar que é sua zona de conforto, por não saberem conviver com o diferente, ou por lhes ser dado a saber que têm dificuldade em reagir à maré da mudança. Devote-se-lhes a desatenção, que não são merecedores de encómios. 
De regresso ao metódico ensimesmar, foi a sua vez de dirigir uma contundente interrogação: este movimento seria tangível, ou era apenas uma simulação para disfarçar o entediante envelhecer? Eram perguntas em forma de logro, porventura, ou apenas perguntas indulgentes. Não queria meter o pensamento ao serviço das possíveis respostas. Desta vez, só importava levantar âncora e partir – nem que a partida fosse sinónimo de errância. Desta vez, a errância não era mundana. Não era uma válvula de escape, reproduzindo o avestruz quando mete a cabeça na areia. Desta vez, não podia ficar sitiado pelas interrogações sucessivas que tinham o condão de protelar o devir. Desta vez era diferente. 
Pôs as forças disponíveis à mercê do levantamento da âncora. Conseguiu. Estava exausto. E contente: ao contrário do que seria de supor, não foi acometido pela científica curiosidade sobre o estado da âncora depois de tantos anos escondida. Levantou a âncora e estava preparado para a partida. A pele, preparada para a tatuagem. Não sabia o que ia ser tatuado. O resto, ver-se-ia depois.

16.4.18

O homem que inventava impérios e não queria tronos


God Is an Astronaut, “Komorebi”, in https://www.youtube.com/watch?v=dLPZpx6LS48
Trouxe palavras ao mundo. Imagens que descobriu nos interstícios das trevas. Dele foram caminhos dantes insondáveis e agora abertos à exploração. Resolveu equações imponderáveis. Mostrou a simplicidade das coisas outrora inextricáveis. Ensinou que as cicatrizes são apenas uma excrescência necessária para o acrisolamento da alma. 
Teve a tutela de impérios levantados pela sua arte, que não era de ficar inerte de cada vez que, fosse seu timbre, viesse passar lustro ao orgulho por ter instruído novos impérios. Não queria prebendas. Muito menos homenagens. Um dia, um figurão, não disfarçando a inveja que tinha por o inventor de impérios ser amado por tanta gente, quis-se colar à fama atribuindo-lhe comenda só ao alcance de feitos superiores. É da têmpera dos políticos, reivindicam um quinhão das proezas alheias calculando que delas se podem aproveitar. Ele recusou. Começou por recusar discretamente, para não ferir suscetibilidades. O mandante insistiu. Chegou a demanda a tal ponto que mais parecia uma intimação. Voltou a recusar. Desta vez, pôs de lado o discurso suave. O figurão caiu no ridículo – estava habituado a que todos o pajeassem, sem direito a contraditório ou a divergência. (O mandante tinha a mania que era predestinado e que o seu nome ficaria selado a ouro nas páginas da história.) 
O homem que inventava impérios não queria tronos a condizer. Uma vez, alguém perguntou por que não queria um trono, ao menos. Respondeu, sem pestanejar, que inventava impérios para os outros. A cada descoberta, não a anunciava com um séquito a tiracolo e com os holofotes garridos adejando sobre a sua aura. Era o oposto:  dispensava o aplauso; dispensava-o para quem dele se alimenta. Os impérios davam-se a conhecer por si mesmos. 
Dele se dizia ser um eterno insatisfeito. Mal açambarcava um império, fazendo xeque-mate sobre os contratempos que tivessem aparecido, esquecia-se dele. O império perdia valor mal era registado nos anais das proezas. Ato contínuo, refugiava-se num esconderijo de que ninguém sabia paradeiro. Não aguentava o cortejo de felicitações consecutivo ao desabrochar de um novo império. A desmultiplicação de encómios incomodava-o. 
De uma vez, logo a seguir a outro império inventado, desenhou a hipótese de se reformar. (Ainda não era de idade da reforma; a reforma que levantou como hipótese era a reforma da invenção de impérios.) A angústia quadrava com o terrível vazio de que se preenchia mal acabava de inventar um império. O desfile do tempo e de mais impérios contracenados não foi tirocínio que chegasse para lidar com as honrarias que o presenteavam. Depois de muito pensar, inventou outro império. Era a única arte de que o seu estar era capaz. 

13.4.18

A bruxa boa


Cocteau Twins, “Carolyn’s Fingers”, in https://www.youtube.com/watch?v=NhGoZLudKyk
A bruxa boa que tinha medo da sexta-feira-treze. Era bruxa boa porque, em contrafação do mister das bruxas, recusava-se a infernizar a vida dos simples mortais sempre que o dia treze do mês coincidia com uma sexta-feira. Nesse dia, quem por ela passava era ungido com as pétalas do júbilo e da fortuna. As pessoas ficavam protegidas contra o sindicato das malévolas bruxas que não tinham descanso na sexta-feira-treze. Estas, sabendo da heresia da sua confrade, não a perdoaram. Ainda quiseram explicações para o comportamento anómalo da bruxa boa. Ela não revelou o segredo. O mal-estar entre as bruxas e a dissidente tinha a força de uma granada desencavilhada. As bruxas ortodoxas não admitiriam que um dos seus pares ultrajasse a fama que as precedia. Uma bruxa boa é uma contradição de termos.
Antes que viesse a seguinte sexta-feira-treze, urdiram uma armadilha para destrunfar a bruxa boa. Nessa sexta-feira-treze, as bruxas más esquecer-se-iam de espalhar a adversidade pelos mortais contrafeitos e todas as doses da dita seriam concentradas na bruxa boa. Ela não poderia resistir ao ataque de todas as outras bruxas. Era uma luta desigual. Não demorou a cair prostrada diante das armadilhas que as bruxas soezmente espalharam em seu caminho. 
Mas a bruxa boa conseguiu os seus propósitos. Naquela sexta-feira-treze, ninguém pôde protestar contra o azar de que não foi vítima. Não houve azarados. As bruxas más estavam ocupadas a destrunfar a bruxa boa. Não ficou uma de serviços mínimos ao serviço do azar condizente com a sexta-feira-treze. Fez-se constar que tinha sido um acidente cósmico; assim como assim, a sexta-feira-treze acabava sempre por recolher um punhado de vítimas que sucumbiam ao indeclinável fado em rima com a usura do dia – pelo menos daqueles que se benziam repetidamente, quando amanheciam sabendo que era sexta-feira-treze.
Paradoxalmente, aquele sexta-feira-treze foi o dia em que mais sorte fora distribuída, aleatoriamente distribuída, pelos mortais. A bruxa boa, exausta de tanto terçar armas contra o ataque demolidor de seus pares, esboçou um sorriso, a custo: as bruxas más tinham conseguido o contrário do que pretendem quando semeiam o alvoroço numa sexta-feira-treze: ninguém protestou contra o azar que lhe calhou em sorte (passe o oximoro). As bruxas más foram as derrotadas no pleito. 
A bruxa boa sabia que uns dias de recuperação depois voltaria ao ativo. Para voltar a ser bruxa má. Nos dias que não eram sexta-feira-treze, ela recuperava os pergaminhos. Daí em diante, fez-se constar que ela era a bruxa boa, apesar de passar grande parte do tempo a fazer de bruxa má.

12.4.18

Rio de fevereiro


LCD Soundsystem, “Someone Great” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=sZDKP5pnhhM
Era uma vez uma cidade crepuscular. Onde os rostos não andavam escondidos, nem disfarçados em seu simulacro. Uma cidade limpa. Uma cidade com as casas diferentes, sem cair em desarmonia. Uma cidade que era atenciosamente escutada pelo rio que habitava nas suas margens. O rio cuidava de impedir que a cidade se deitasse num estertor. Era sua testemunha e, ao mesmo tempo, estava de atalaia contra os sobressaltos. Dizia-se que o rio não dormia, e era verdade. Na sua vigilância imorredoira, o rio era património constituinte da cidade. 
Chamavam-lhe rio de fevereiro. Pois fora num longínquo fevereiro que deusas vigilantes se insurgiram contra a ousadia de uns forasteiros que ardilosamente quiseram tomar conta da cidade. As deusas fizeram um levantamento de tal ordem que as naus dos forasteiros, ancoradas no cais da cidade e com os forasteiros nelas repousando, foram devoradas pelas ondas impetuosas. Ninguém sabe o nome que o rio tinha dantes – nem os historiadores zelosos que não conseguiram encontrar menções ao nome do rio nos registos de antanho. Podia ter sido propositado, a dissolução dos registos prévios ao acontecimento que selou o nome do rio talvez por uns notáveis da cidade que assim quiseram homenagear o ato protetor do rio.
Este era um rio generoso para a cidade crepuscular. Era seu manancial. Um fértil aquário que a alimentava. Continha-se dentro das margens quando os invernos eram pródigos na produção de chuva. A cidade nunca foi atacada pelos desmandos do rio, que sempre se conteve no caudal e nunca transbordou das margens. Em respeito pela ordem tutelar do rio, a cidade organizava uma celebração a cada primeiro domingo de fevereiro. Durante todo o dia, acendiam-se as luzes da cidade. As luzes das iluminações públicas e as luzes de todas as casas. As pessoas não olhavam a custos na hora de prestar o tributo de que o rio era credor. Durante o dia e a noite, ornamentavam os seus (nesse dia) imperativos chapéus com lâmpadas de néon, a condizer com o espírito festivo, e encomendavam-se à farra sem limites. Dizia-se que era o contraponto com a cidade permanentemente crepuscular. Dizia-se que a cidade era propositadamente crepuscular, para naquele primeiro domingo de fevereiro se reinventar em contraste e, desse modo, avivar a homenagem ao rio tutelar.
Um dia, descobriu-se que um dos vizinhos países arquitetou uma barragem. O caudal do rio ia ser transfigurado. Os habitantes da cidade crepuscular foram tomados por um pânico tentacular. Temiam que o rio perdesse a sua identidade. Temiam que o rio perdesse os pergaminhos de figura tutelar da cidade. Temiam que a cidade deixasse de ser a cidade magicamente crepuscular.

11.4.18

O que consegues dizer em cento e sessenta e três segundos?


The Breeders, “Gigantic” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=Zuls6cDzW_U
(Como se te houvessem dado palco e megafone e perante o desafio tivesses que proclamar umas palavras eloquentes)
         Não convoco as altercações do tempo pretérito, nem os degraus que esperam pelo que lhe é vindouro. Não excomungo nenhum dos dois. Fiquei exausto das redenções esboçadas – cansado de dar conta que eram exercícios condenados ao malogro. Também não convoco esperanças. Prefiro a degustação assombrosa do fértil terreno que tenho sob os pés. Levando as interrogações ao acaso pela mão, o tangível pensamento que se terça contra a inércia dos que amanhecem poltrões e assim ficam pelo que sobra do dia. O fumo linear que sai das chaminés não é chamamento. As coisas lineares, tenho-as como desaprovações. Atraem-me as complexidades que se jogam no palco dos desafios, as rimas desestruturadas, os enigmas com força de enigma, os sucessivos novelos fatiados no dorso das dúvidas, as perguntas que medram nas imediações de perguntas precedentes, o ronronar dos gatos, as páginas por abrir de um livro em espera, os néctares convocados na amesendação sublime, os prazeres que farram na companhia certa. Gosto de me saber hedonista. Não refém de credos. E estilhaçando as certezas todas contra os fragmentos de espelhos baços que, depois de estilhaçados, recuperam o seu resplendor. Não me importam as ruínas que se insinuam em varandins escondidos no sortilégio da noite. Desavisem-se os beócios que se julgam vencedores de pleitos avulsos: maior é a proeza dos que decretam derrotados, mesmo que decaiam na possível humilhação do contragosto: a eles pertence a humildade dos vencidos, que se sobrepõe à prosápia dos triunfantes. Não me admiram as farsas elencadas nas estantes apinhadas. Não recuso as miríades de paisagens que se antepõem em telas mentais. Não rejeito os sins que têm sua demanda na constelação da subjetiva linhagem. Se preciso for, danço com a força de um desengonçado. Se preciso for, alinho em comícios que são minha antítese. Se for preciso, deito-me à experiência do neófito, só para em meus braços acolher uma ilação sobre as impressões do desconhecido. Quando preciso, adormeço no lânguido pesar das almas serenadas. Sabendo que amanhã exclamo, com a força da alvorada, “bom dia!” a quem o merece escutar em primeira mão. Sabendo que um dia assim começado é o feito maior que posso congraçar. O resto, não importa. Porque o resto assim desimportante não rivaliza com o que conta para os inventários que contam. 

10.4.18

Eu pago as bebidas!


Dead Can Dance, “Rakim”, in https://www.youtube.com/watch?v=kq59rEVWQNI
Feito festim, pois o seu contrário açambarca as trevas militantes, que não são para aqui chamadas. Frivolidade? Se preciso for: cantamos e dançamos (se preciso for, a derradeira), e declamamos poemas, e celebramos com o vinho efémero, e somos praticantes das loucuras que vierem ao regaço. Somos intérpretes do amor. Porque a efemeridade manda festejar o demais como se não houvesse amanhãs para celebrar. Não sejam gastos instantes com convulsões interiores, arremedos de melancolia, o acosso da peregrinação interior que desagua em labirintos gongóricos. Não queremos indizíveis estrofes, palavras ininteligíveis, a complexidade malsã, a apneia da malícia. Não queremos o basalto rijo a esfoliar dolorosamente o corpo. Não queremos o azedo da vida. Não queremos o que não queremos em visitação que esvazia por dentro a vontade. Queremos as paredes límpidas para as podermos pintar ao nosso gosto, para nelas afixarmos os poemas suturados pelos dedos açorados. Queremos erguer os cálices em calorosas celebrações, podermos sentir que não se esgota a inventividade na hora de entoar o próximo pregão em jeito de saudação. Queremos saber o sentido do neófito. Queremos voltar aos lugares demandados, se assim se congeminar a vontade. Queremos o que nos for dado a querer, consagrando a vontade no mais elevado altar, sem peias a adorná-lo. Eu pago as bebidas! Chego-me à frente, no vulcão ardente da desmemória. Terço as armas da imensurável curiosidade que se oferece à posteridade que nos espera. Postergamos os embaraços que afeiam as paisagens de que formos tutores. No berço do porvir, somos seus passageiros indeléveis, o olhar preparado para as surpresas mostradas por um novo lugar, por um novo teatro em que agitamos o olhar. Dispensamos conselhos avisados: queremos o seu contrário – desconselhos e alguma loucura demiúrgica, no sentido de, por seu intermédio, a nós virem novos achamentos. Não queremos respostas, esse ardil mundano; preferimos as perguntas espraiadas no céu arejado. Não somos oferendas em covis obsoletos, lucidez que nos ufana. Se temos duas paisagens à escolha, sabemos qual é a mais bela, a mais promissora, a que cicia as palavras que destemperam os pesares e ajuramentam os néctares que hão de ter caudal nos cálices alçados. Sou eu que pago as bebidas!

9.4.18

Dito de outro modo


Eels, “Today Is the Day”, in https://www.youtube.com/watch?v=qx3sKPoeOis
Guardo os projetos firmados no convénio do tempo. Guardo-os sem os limites do possível, enquanto os modos do tempo conspiram contra sua eventualidade. Sei-o, por experiência própria, são fraudulentos os projetos alinhavados, por melhores que sejam as intenções que os firmam. Os projetos são uma estultícia, o mais puro estado do tempo gasto sem serventia.
Dito de outro modo: a espuma abundante, vertida pelo mar, perecendo no areal que bordeja o mar, é a metáfora convocada. A espuma foi contingente às marés vivas que se convolaram contra a indefesa praia. Amedrontou enquanto foi iracunda imagem que pendia sobre as frágeis arribas, à espera de serem despedaçadas pela maré-viva sem freios. E, todavia, o que sobra na posteridade do tumultuoso mar é apenas a espuma, um inerte à espera de ser dissolvido pela próxima maré alta, ou retirado da areia por zelosas brigadas de limpeza. Não conta para nada, a espuma assim deposta. 
E, dito de outro modo: somo reféns das circunstâncias. Não somos seus tutores e não as conseguimos domar. Somos como papeis atirados à rua e que voluteiam sob a força do vento, errando ao acaso. Só temos de esperar pelo vento e nem sequer conta sabermos a sua orientação. Nestes preparos, desenhar projetos que ousam a infalibilidade das projeções milimetricamente assistidas é uma empreitada atroz. Somos peças voláteis num emaranhado complexo que está acima das possibilidades do nosso entendimento. Somos esses peões, minúsculas peças num imenso tabuleiro onde tudo se congemina, e o feixe que nos coloca num certo lugar é matéria insondável. A empreitada está condenada ao malogro.
Ou, dito de outro modo: somos esta fragilidade irremediável, autênticas peças de cristal no sopé de seu estilhaçar. Somos a matéria violável pelos desígnios exteriores. Não seremos nulidades no sentido habitual do termo; a menos que em nós trespasse a ideia da invulnerabilidade, do heroísmo afirmativo, de centrípeto lugar ocupado em ensimesmado devaneio; a menos que uma constelação de ilusões fermente a predestinação que nos coloca acima dos demais. Tudo isto é tão categórico como unicórnios. A dependência destas ilusões dá alento aos grandiosos projetos, como se fôssemos lídimos arquitetos do nosso devir. Como não somos, sobram duas hipóteses: a humilde resignação à pequenez do estatuto pessoal, ou a teimosia em nos acharmos maiores do que a estatura que trazemos em nós. É a diferença entre as fragilidades não como defeito e a obsessão por ilusões que desaguam em desenganos.
Dito de outro modo: os projetos são um escapismo imprestável.

6.4.18

Tribunal (epílogo)


Sigur Rós, “Hoppípolla”, in https://www.youtube.com/watch?v=mZTb8WxEW78
Estavam todos juntos. No mesmo sonho. O erudito defenestrado. O ecologista proscrito. A mulher da limpeza. O tatuador. O aparente suicida. O diplomata. A líder da seita e a sua discípula. Juntos no mesmo sonho. Num lugar idílico, onde todas as flores eram de todas as cores ao mesmo tempo. As arcadas desciam sobre o chão de veludo. Pela janela, antepunha-se um arco-íris. O vento sibilino ecoava como se fosse uma orquestra de violinos. Num sofá gasto, ao canto da sala, um cão cansado e velho dormitava – às vezes, entreabria um olho, em pose vigilante. Também havia um móvel esmerado no design ornamentado com duas jarras vazias. Uns archotes pespegados às paredes emprestavam luminosidade baça. Ao centro, um trono tosco, feito de madeira não tratada nem envernizada, sobre ele caindo um longo manto acobreado. Nele sentado, o primeiro-ministro. Empunhava um totem na mão direita. Na cabeça, um chapéu de cardeal. Vestia calções de banho e calçava botas de cowboy. Tinha ar grave, o primeiro-ministro. Sob o seu trono estavam todos os outros alinhados: o erudito defenestrado, o ecologista proscrito, a mulher da limpeza, o tatuador, o aparente suicida, o diplomata, a líder da seita e a sua discípula. À espera do julgamento.
- Primeiro-ministro: Alguém se acusa diante de mim?
(Silêncio sepulcral e demorado, os outros olhando uns para os outros, outros cabisbaixos, outros fazendo de conta que não estavam ali.)
- Primeiro-ministro: Repito: alguém se acusa? Alguém que tenha algo a proclamar em sua defesa?
- Tatuador: Não sei ao certo por que estou aqui diante do primeiro-ministro. Não sei se será deferência, ou se hei de recear.
- Primeiro-ministro: Só as senhoras e os senhores o saberão.
(O primeiro-ministro, como homem que honrava o politicamente correto, fazia questão da diferenciação de género, começando pelo género feminino.)
- Líder da seita: Desconfio que estamos perante uma conspiração. O primeiro-ministro que confesse quais os interesses endinheirados que o levaram a aprisionar-me neste sonho.
- Primeiro-ministro, ignorando a provocação da líder da seita: Gostava de saber se pretendem alegar algo em vossa defesa, antes da decisão ser tomada.
- Ecologista proscrito: Que decisão?
- Primeiro-ministro, afagando o cão sarnento que, entretanto, despertou do sono: Ah, não vos ocorre por que estão perfilados diante de mim? 
- Tatuador: Sinceramente, não. 
- Primeiro-ministro: Estou à espera de uma expiação pessoal. Com base nela, a na sua sinceridade, tomarei a decisão para a qual fui mandatado.
- Discípula, em arroubo de rebeldia para agradar a líder da seita: Pois...mandatado pelos ignominiosos interesses do capital, só para decapitar a liderança do movimento que tanto o incomoda e a esses interesses também.
- Primeiro-ministro: Ó menina, tenha tento na língua. Isto não é uma reunião dos órgãos estatutários da vossa coletividade. Nem um comício. A coisa pôs-se muito mais séria.
- Erudito defenestrado: O senhor primeiro-ministro, com o devido respeito, permita-me uma elucidação que ainda está por fazer: a sua decisão tem que finalidade?
- Primeiro-ministro: Saber qual de vocês morre antes dos demais.
Foi a agitação geral, com um visível desconforto a tomar conta dos presentes. 
- Diplomata: Em minha defesa reclamo a nulidade desta jurisdição. Não respondo perante o primeiro-ministro de um país estrangeiro.
- Ecologista proscrito: Não percebo: sobre nós impende acusação tão grave que a cominação é a morte?
- Tatuador: A morte? A morte?! Isto é um concurso público? A morte de um de nós levada a concurso público?! Só mesmo se for por dentro de um sonho. Corrijo: por dentro de um pesadelo.
- Mulher da limpeza: Pouco me interessa. Se for preciso a morte levar-me, dou um passo à frente e a ela me ofereço.
- Primeiro-ministro: A senhora é a primeira a ficar ilibada. Parece-me justo: se não lhe importa a morte, que seja agraciada com demorados anos de vida. Pode ser castigo – mas será para aprender a incluir o valor da vida nos horizontes.
- Líder da seita: Em minha defesa não alego nada. É um bocado como o diplomata: não reconheço legitimidade a este primeiro-ministro.
- Primeiro-ministro: os senhores(dirigindo-se à líder da seita e ao diplomata) ainda não terão percebido o palco em que estão acorrentados: é este, e eu sou seu único tutor. Os meus juízos são supremos e à prova de recurso. Dizerem que não me reconhecem jurisdição ou legitimidade é risível. Procurem sair daqui. Chamem-lhe sonho: procurem sair deste sonho, a ver se conseguem. Estão convencidos?
- Tatuador: A mim, isto parece uma peça surrealista. O cão velho a segredar sentenças ao primeiro-ministro é a prova definitiva.
- Primeiro-ministro, dirigindo-se ao aparente suicida: O senhor aí, no canto, ainda não disse nada. Não tem nada a afirmar em seu favor?
- Aparente suicida: Remeto-me ao silêncio. Prefiro assim. 
- Primeiro-ministro: Insisto:  alguém se adianta na empreitada de alegar a sua defesa?
- Erudito defenestrado: Mas, senhor primeiro-ministro, se não sabemos de que vimos acusados, como podemos expor a nossa defesa?
- Primeiro-ministro: Convoquem a memória. Mergulhem nos fundilhos onde navegam as vossas memórias. Talvez seja suficiente.
- Tatuador, em registo irónico: Ah! Contra mim falo: quando era rapazola, matei dois coelhos recém-nascidos. Por pura maldade. Não dormi três noites seguidas. 
- Primeiro-ministro: Está o senhor ilibado. Quem se segue?
- Discípula, em pânico e com a voz nervosa: Eu juntei-me ao movimento por pura rebeldia. Tenho a mania do espírito de contradição, de remar contra a maré dominante. Às vezes, dou comigo a pensar se não é uma válvula de escape contra a incorrigível timidez. Uma forma de a suplantar. Não sei. Não sei...Sei que não sou descomprometida militante do movimento.
- Líder da seita: Outra traidora! São uns atrás dos outros. Hão de arder no inferno!
- Primeiro-ministro: A discípula e a líder estão ilibadas. A menina, pela convincente sinceridade. A líder da seita também. E porque merece continuar a consumir-se na bílis purulenta de que é toda ela feita.
- Diplomata: Repito: não reconheço jurisdição ao primeiro-ministro. Porém, para os devidos efeitos, contra mim declaro todos os vícios incompatíveis com o donaire da diplomacia. O maldito desejo que me atira para os braços dos bacantes. O esconderijo em que vivo. A angústia interior dos dilemas que me consomem. Se quiser, não me importo de ser levado à pira onde minha vida se incinera. Assim seja!(Sem notar a contradição em que caía; ou talvez sim, mas com receio que a encenação não fosse mero jogo.)
- Primeiro-ministro: O diplomata está parcialmente ilibado. Manter-se-á vivo, mas será denunciado às autoridades do seu país, pois nenhum país merece ser representado por um embaixador com tantos e tão maus vícios privados.
- Tatuador: Já cá faltava: um julgamento de costumes.
- Primeiro-ministro: O senhor não abuse da minha paciência. Tenha em consideração que posso recuar na decisão de o excluir da candidatura à morte.
- Ecologista proscrito, a tiritar de medo, antecipando-se ao erudito defenestrado, que também fez menção de usar a palavra:O que posso dizer em meu desfavor? Durante muitos anos, não fiz a separação dos lixos. Quando enriqueci inesperadamente, deixei um prazer mundano contrariar as ideias que defendi durante décadas. Mas sinto falta das reuniões e do ativismo e das manifestações. E adoro o Porsche. Às vezes, acho que este mar imenso de contradições é a minha pegada genética. Já deixei de me importunar. Até com os julgamentos pessoais que os outrora camaradas continuam a fazer. O Porsche fala mais alto.
- Primeiro-ministro: Não considero explicação convincente. Todavia, pelo desassombro, concedo um indulto parcial. O Porsche irá parar à sucata na sequência de um acidente de trânsito. Esteja descansado: safar-se-á apenas com uns arranhões, por milagre (com o meu dedo).
- Erudito defenestrado: Contra mim, contam os prazeres mundanos? Ser bacante, como o diplomata? Contam os boicotes às empresas? Contam as mulheres de família que seduzi, os lares que contribuí para deixarem de o ser? Contam as muitas palavras que escrevi por encomenda, sem convicção de as deixar seladas em papel? Contam as falsas lágrimas? Contam os arranhões na integridade dos outros por mera ação tática, ou por gratuito deleite de assistir ao pânico dos empresários? Contam os ardis que levaram outros à desilusão? Conta a impressão que sou um erudito mal amanhado, sentado no trono de um estatuto a que cheguei sem saber como? Contam os livros que disse ter lido, em pura mentira? Conta ter mais medo da solidão do que da morte?
- Primeiro-ministro: Conta tudo isso. Se, com o tempo vindouro, ficar convencido que estas são as suas mortificações, não terá a morte como condenação. E o senhor aí no canto– dirigindo-se ao aparente suicida – continua calado?
- Aparente suicida: Estou a apreciar o espetáculo. Comovente. Preferia manter o silêncio. Não por não reconhecer a legitimidade do primeiro-ministro, mesmo que seja no absurdo papel de tutor das nossas vidas. Mas vou mudar de posição. Digo isto: o silêncio. Apenas entrecortado pelo seguinte: (e arremeteu, em estugado passo na direção do primeiro-ministro, empunhando um punhal) é a vida do primeiro-ministro que vai deixar de existir. A partir de agora!(E cravou o punhal fundo, na glote no primeiro-ministro, que nem conseguiu esboçar uma reação de surpresa.)
       E assim se consumam as inesperadas reviravoltas da vida. O aparente suicida era um assassino sem escrúpulos.

5.4.18

Que não se perca uma única bala


Bulllet, “Hong Kong Stomp”, in https://www.youtube.com/watch?v=6YAwx1HaqHY
No dia da sua preguiça, o tatuador decidiu que o entardecer seria na esplanada sobranceira ao miradouro, o lugar onde a cidade se apresta em genuflexão levemente inclinada. Pediu uma cerveja. Se o tempo estivesse de feição e o ocaso fosse deslumbrante, prolongaria a estadia na esplanada e talvez amesendasse para o jantar. Ia no segundo copo de cerveja. Na mesa do lado, sentaram-se duas mulheres. Uma, mais velha e com pose de líder de uma coisa qualquer, atendendo ao desembaraço dos modos e à diligência com que decidiu, por ela e pela companhia, o que iam tomar. A outra era uma jovem com ar tímido, com o rosto macilento e voz vacilante, em rima com a timidez sem remédio. A mais velha, um autêntico furacão de modos, começou a conversa. A voz estrepitosa determinou a partilha da conversa com as mesas limítrofes.
- É o que acontece quando um dos nossos ousa a dissidência. Temos de ser implacáveis. A expulsão é a única possibilidade, vociferava, como se a ira espingardeasse da boca na exata medida dos perdigotos visíveis, no afã de exibir os pergaminhos da liderança.
- O camarada vinha acusado de quê?, perguntou, a medo, a mais jovem, que parecia ter sido levada para a esplanada para dar continuidade ao tirocínio.
- Soubemos que o ex-camarada – é assim que tens de o tratar, pois ele já não nos pertence – começou a ter hábitos não consentâneos. Talvez a crise da meia-idade o tenha levado ao desvio. Não toleramos estes desvios. 
- E não receamos ser acusados de ortodoxia?, ousou outra pergunta, talvez não avaliando o risco do que podia ser considerado um topete.
- Não. Esse é um juízo alinhavado pelos outros, os nossos adversários e inimigos. Como tal, é um juízo irrelevante. Não damos atenção a esses rótulos que visam menosprezar-nos.
A conversa começou a soar a déjà-vupelo tatuador. Foi naquela noite em que o enésimo atraso da amiga o deixou refém da conversa entre dois homens que se lamentavam repetidamente por terem sido excluídos dos grupos a que pertenceram. Tinha a impressão que o diálogo entre as duas mulheres versava sobre o homem que se fazia passar pelo erudito defenestrado. Elas continuaram, com ênfase para a doutrinação da mais velha:
- O triunfo das nossas causas exige a coesão interna. A ninguém pode ser dado o direito de divergir. E ninguém pode ter comportamentos que sejam um ultraje aos nossos cânones. Se não for assim, acabamos por cair em estilhaços. 
- Não receamos ser acusados de totalitarismo?
- Lá estás tu outra vez! Até parece que engoliste o catecismo das forças da ordem, que estás para aqui a reproduzir a semântica do sistema. Não nos interessa o que os outros dizem de nós, nem as acusações que nos fazem. Se quiséssemos ser como eles, não éramos como somos – vê se entendes isso, ou não te auguro vida longa no movimento.
- De acordo, não era a minha intenção, desculpa. Foi só uma pergunta, para me situar. Ainda sou nova no movimento. Tenho de ir aprendendo.
- Leste aquele livro que te emprestei?
- Faltam as últimas oitenta páginas.
- Lê com muita atenção. Faz uma leitura demorada. Se fores assaltada por dúvidas (o livro, hás de convir, é de leitura complexa), estou aqui para as esclarecer. Dou aulas na universidade e esse é um dos autores que interpretamos.
- Deixa-me voltar ao ex-camarada: podes dizer por que foi renegado?
- Sim. Através dos nossos contactos, soubemos que começou a ter hábitos burgueses e a dar-se à devassidão. 
- Não sabia que somos rigorosos em matéria de costumes.
- Somos. É uma questão de disciplina. Se não impusermos a disciplina, não podemos almejar a coesão interna e – como disse há pouco – fragilizam-se as causas que prosseguimos. Ademais, o livro que te emprestei é o tira-teimas: se pertences ao movimento, entregas-te a ele, no despojamento da tua vida. É verdade: deixas de ter vida própria, se ela se transviar.
- Ele foi alvo de um processo interno?
- Claro. A acusação foi lida pelo comité de sábios e, ato contínuo, a decisão de expulsão foi anunciada pela mesma via, ficando selada nas atas constitutivas do movimento.
- O ex-camarada teve a possibilidade de se defender?
- Não era preciso. Tínhamos provas irrefutáveis. O movimento teve a bondade de o chamar ao comité de sábios para tomar conhecimento do libelo acusatório e da decisão aprovada. As regras foram todas cumpridas.
A jovem estava mais pálida do que quando chegou à esplanada. O tatuador começou a sentir comiseração da rapariga. Parecia que a sua vontade se tinha ausentado, ela ali à mercê da guru maniqueísta. E percebeu os contornos da conversa entre o erudito defenestrado e o ecologista proscrito, uns dias antes. Lamentou que a sua intrusão, em jeito de provocação, tenha acirrado a fúria de ambos os homens. Mas não sentia comiseração pelo erudito defenestrado: antes deitado ao abandono e à solidão do que na pertença de tamanha absorvente e implacável companhia.
(E se a devassidão foi o crime que ditou a defenestração, de certeza que está melhor do que dantes.)