19.10.21

Vindima

Max Richter, “Haunted Ocean”, in https://www.youtube.com/watch?v=1UuxUMF7dpI

As mãos jogam-se ao acaso. Colhem os frutos maduros e esbracejam a favor dos deuses que foram tutores da safra. As mãos não se cansam, nem em jornadas contínuas que unem a alvorada com o entardecer, como se não houvesse tempo de permeio. Nem os calos que se constituem seus mapas hasteiam a dor que podia contrabandear a vontade. As mãos perseveram e com elas nasce um rio de rostos marejados na colheita esperada.

Pelo meio, umas quantas vozes; os detentores das mãos não são reféns do silêncio. São essas vozes que matam o silêncio, apenas interrompido pelo sibilo das abelhas que acompanham a vindima à distância. As palavras sobem os socalcos e embebem-se na árvore centrípeta que parece um pelourinho, encimado. O pelourinho só aparentemente é feito de granito; uma inspeção meticulosa revelaria todas as vozes arquivadas que erigiram o pelourinho, dando corpo aos socalcos que desenharam a paisagem. O cadastro de todas as mãos arquitetas de tantas colheitas.

Os corpos não sentem a estafa. Não quebram, nem quando um sol enciumado se vinga neles, inaugurando um caudal de suor nas suas peles. Eles afastam o suor que escorre pelo rosto num movimento espontâneo, enquanto um esgar disfarça o incómodo. Não será a canícula encomendada pelo sol enciumado a derrotar os corpos que se fundem com os socalcos. Como em tempos imemoriais, quando corpos frágeis derrotaram o xisto da paisagem e lhe conferiram um rosto aformoseado.

Ao anoitecer, na adega, inventaria-se a jornada. As vozes são aprazíveis. Combinam nos versos rudes que rimam com as mãos ásperas, com as rugas que são a identidade dos rostos adulterados pelo sol e pela estafa. Mas ninguém se lamenta. Ninguém intende a angústia entre as sílabas magoadas de tantas jornadas indúcteis. 

Nas lonjuras, da geografia e do tempo, em que fidalgos haverá no deleite dos néctares dali colhidos, não farão eles ideia dos sacrifícios silenciados que se somaram a favor dos seus prazeres. Nem aquelas vozes e as mãos sábias que colhem os frutos maduros reclamam outro patamar. Preferem a indulgência do silêncio e do anonimato. Estes são os socalcos que lhes emprestam vida. E eles sabem que não é a vindima o juro maior que pagam na usura das vidas sem remédio. 

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