Não era o nevoeiro que tomara conta da manhã que embaciava a lucidez. Eram as reservas mentais que se abatiam sobre o dia frio, prolongando-o na sua inércia. Dessa languidez não se retiravam ensinamentos, a não ser que o corpo se entrega a uma ausência que parecer ser heurística. Dias há em que a única empreitada é fazer nada. O que houver por cumprir fica adiado. Todos temos direito a um dia de ausência. É como se nesse dia estivéssemos temporariamente suspensos do inventário das almas e nos fosse dada a possibilidade de sairmos de nós para nos vermos, para vermos tudo o demais, a partir de uma cumeada. Nesse dia, as vírgulas são desarrumadas com o consentimento de quem as tutela. A gramática fica sujeita a regras novas, regras ditadas pela vulnerabilidade das almas desapossadas de um dia. Poderá alguém protestar que não devíamos ter o direito de procrastinar um dia, pois todos os dias são bens preciosos pela sua escassez. (A vida, por mais longa que seja, é sempre escassa.) Poderá esse alguém convocar o lugar próprio da gramática, sem se exilar num lugar que se esvazia por dentro dos lugares que são dados a conhecer. Concluirá que as vírgulas não têm direito a uma arrumação avulsa. Elas sujeitam-se às regras. Tudo se sujeita às regras. As poses postiças de quem se disfarça numa ausência retórica revertem a desfavor de um fingimento sem serventia. Haja quem contraponha: fazemos do tempo o que a nossa vontade determina e não são as vontades alheias que ditam as regras para consumo próprio. Até quem execra as vírgulas fora do sítio pode reivindicar a seu favor um tempo de exceção, ou um não-tempo (ou um tempo por fora do tempo como o sabemos), só para experimentar as vírgulas fora do sítio.
15.10.21
Vírgulas fora do sítio (short stories #364)
Depeche Mode, “Useless”, in https://www.youtube.com/watch?v=U2Kyu4XURaE
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