Aparecia cabisbaixo na fotografia, o rosto mergulhado sobre o chão, anónimo sob a sombra do chapéu. Era como se tivesse medo da luz que dominava o dia – ou medo do dia, de todos os dias. Para exorcizar o medo, escondia o rosto no véu proporcionado pelo chapéu. Quem o visse com demora, não conseguia desenhar a silhueta do rosto.
Contudo, era um rosto sem fronteiras. Os traços indistintos desdobravam as possibilidades. Podia ser um cenho fechado ou um sorriso disfarçado (incomodava-se com o sorriso da moda – o sorriso na moda – das estrelas artificiais da televisão, que até a dormir exibem um sorriso que tem tanto de perene como de ardiloso). Quem reparasse no rosto escondido pela sombra do chapéu, não conseguia desenhar os seus limites. Era como um mapa impossível, por ausência de bússola motriz.
Não se importava. Fazia questão de aparecer em público na companhia dos chapéus de que era tutor de uma farta coleção. Quando sentia que alguém o olhava de frente, tentando discernir a atalaia do rosto, descia-o para ficar sob a tutela da sombra do chapéu. Havia quem dissesse que era uma imagem de marca. Outros anuíam que o rosto semicerrado à mercê da sombra da aba do chapéu era o seu rosto a sério. Se dele se fizesse uma caricatura, só seria possível observar a boca e o nariz já apenas uma penumbra deitada sobre a esfera protetora da sombra do chapéu.
Podia haver quem protestasse contra a persistente sede de anonimato. Depressa condescendiam. Ninguém deve ser obrigado a oferecer a integridade do rosto ao desanonimato.
Um dia, precisou de renovar o cartão de cidadão. Apresentou-se na conservatória na posse de um chapéu indefetível. A funcionária advertiu que a lei obriga o rosto inteiro na fotografia do documento de identificação. Protestou. Exibiu o cartão de cidadão que estava quase a caducar: “veja a senhora pelos seus olhos, nesta fotografia apareço de chapéu. A senhora não me pode obrigar a revelar a totalidade do rosto se essa não for a minha vontade. Informe-me sobre a lei.”
Intimidada pela convicção do protesto, a funcionária permitiu a fotografia de um semi-rosto. Ela não conhecia a legislação do foro. Se fosse diligente nas suas obrigações, e se tivesse conhecimento de causa das leis, teria obrigado o rapaz a posar diante da câmara com o rosto como é só conhecido dos espelhos em casa. Ela não sabia das leis aplicáveis, nem sabia que o rapaz do chapéu permanente era perito na arte do bluff. Um farsante de corpo inteiro – e não apenas do rosto refugiado no disfarce contínuo.
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