Alguns diziam que tinha parado no tempo. Outros, que viva perdido num pretérito já remoto. Diziam-no por causa da pose aristocrática (e do indeclinável apoio às monarquias deste mundo, ele que tão contristado estava porque o seu país, outrora uma monarquia pujante, primeiro deixou de ser pujante e depois também deixou de ser monarquia).
Da pose aristocrática fazia parte um bigode farfalhudo que cultivava com diligência. O bigode contorcia-se na extremidade, dobrando-se para o interior, ficando os pelos terminais a adejar sobre o corpo principal do adereço facial. As extremidades quase caíam sobre o corpo principal do bigode – e isso só não acontecia porque ele tratava-o meticulosamente, aparando-o quando os pelos terminais já quase roçavam o corpo principal do bigode. Ostentava-o, com garbo. Sabia ser uma imagem de marca que os adversários ideológicos não só não envergavam como até repudiavam. Esse ostracismo era, para ele, incentivo habilitante.
Como se considerava uma boa (e devotamente católica) alma, o aspirante a aristocrata praticava bondade social com regularidade. Ajudava na distribuição de mantimentos aos sem-abrigo, instruía os petizes nos meandros da bíblia e era voluntário em campos de escuteiros. Era uma obrigação social a que, enquanto bom candidato a aristocrata, não podia menosprezar, ainda que o sacrifício que procurava esconder nas águas-furtadas do pensamento pudesse revelar o contrário. Os aristocratas modernos têm de se pautar pelas modernidades que a sociedade congemina. Por muito que a convivência com os súbditos causasse engulhos (apenas interiores, contudo).
Um dia, num acampamento de escuteiros, um grupo de estroinas esperou que o aristocrata instrutor recolhesse à tenda para pôr o sono em dia. Esperaram que o aristocrata caísse no sono profundo, o que não seria difícil de comprovar devido ao conhecido ressonar que troava nas imediações da sua tenda. Mal o silêncio da noite começou a ser entrecortado pelo ressonar do putativo aristocrata, os galfarros abriram o fecho da tenda com zelo silencioso e entraram nos aposentos. A partida estava prestes a ser cometida: um deles, usando luvas que a cozinheira tinha de usar para confecionar o rancho, besuntou as extremidades do bigode do aspirante a aristocrata com os dejetos ainda mornos que um deles propositadamente preparara para o efeito. Terminada a embaraçosa operação, escapuliram-se entre risadas que mal conseguiam travar.
Na manhã seguinte, o aristocrata acordou cercado por um odor nauseabundo. Procurou e procurou nas imediações da tenda, não fosse um dos petizes ter-se servido dos arredores da tenda para se aliviar de uma diarreia que não teria ido a tempo da improvisada casa-de-banho. Não descobriu a origem do cheiro pestilento. Só ao pequeno-almoço, entre as risadas indisfarçáveis dos adolescentes escuteiros que se intercalavam com um esgar de desprazer motivado pela exportação do odor merdificado, o aristocrata instrutor descobriu o que fora feito ao seu bigode.
O homem nunca mais foi o mesmo. A vergonha ditou um exílio voluntário por uma larga temporada. Quando voltou a ser visto em público, já não trazia o bigode excêntrico como marca registada. E, diz-se à boca grande, abdicou das pretensões aristocratas para se dedicar à luta da classe operária através da militância num partido exíguo que era das poucas reminiscências do Verão quente de 1975. As pretensões aristocráticas emudeceram com o bigode extinto.
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