6.10.21

Martelo pneumático

God Is An Astronaut, “Remebrance Day” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=qmWhckCqs6w

Como é que se passa o tempo sem ser um passatempo? Não se pressentiam respostas que fossem um aval. Sem perceber o idioma da alma, nem encontrar tradução à altura, sentia que era um passageiro do tempo e dele seu refém. Não havia palavra pior, ou ideia pior, do que passatempo.

Às vezes, a meio de uma insónia, jurava que teria de desarmadilhar o tempo para dele não ser vítima. Tudo se passaria por fora dos relógios que eram o pior tiranete (se é que se pode considerar a hipótese de um tiranete benévolo). A quimera do tempo suspenso não é a morfologia da uma ilusão. Teria de ser o prefácio de uma profecia à espera de consentimento.

Tudo o que era provável não aderia à estrada que se inscrevia no seu paradeiro. Muito embora houvesse profecias ajuramentadas (como se um desejo não esperasse pelas contingências do incerto), os oráculos não eram a sua mortalha. Preferia a dureza da artilharia pesada – se, por artilharia pesada, se entendesse o martelo pneumático e a maquinaria afim que percutem no subsolo que é a carne que se enraíza, devidamente hasteada pelo sangue avivado. O tempo deixava de contar. Os relógios, todos exilados, deixavam de contar o tempo de que eram procuradores. Talvez o zero voltasse a ser o sinónimo de um alento.

O tartamudear do martelo pneumático revelava a manhã sem esteios. Ficava sozinha, a manhã, sem a proteção do orvalho que lhe empresta o lastro. Os verbos ofuscados lembram-se dos apeadeiros e devolvem ao mapa lugares que dantes eram um opúsculo de decadência. Se não fosse pela vertigem do futuro, o tempo deixara de ter lugar no vocabulário. Podia ser que chegasse para o esvaziar de significado. E o futuro não passasse do dia corrente.

Mas não contava com as mentiras herdadas de tempos anciãos. Há mentiras que não dependem dos mitómanos. São consumidos pelas circunstâncias que não dominam, nem fingem tolerar. Socorrem-se dos martelos pneumáticos para hipotecar o peso arcano das mentiras que se sopesam no avesso de uma alquimia. Ao menos, o tonitruante soar dos martelos pneumáticos não deixa as mentiras à mostra e promete a suspensão do tempo.

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