21.10.21

Caso único

The Cure, “Pornography”, in https://www.youtube.com/watch?v=8904LrXrtWo

O artesanato singular cola-se à pele como cimento intangível. Como se fosse uma marca registada, tatuada com a brutalidade dos contratempos. Não se foge deles. Assomam contra o corpo como uma maré-viva que toma conta do areal naquela parte que costuma estar a coberto do mar. Ainda assim, diz-se ser um caso único, que irrompe na sua singularidade entre a indiferença.

Os costumes quase valem como leis. Como comodato de um conservadorismo que coloniza o espaço em redor, mesmo que muitos dos atores se revejam numa vanguarda qualquer. Agarram-se aos costumes porque os costumes são confortáveis. Dispensam as interrogações – e as interrogações são aquele lugar incómodo que obriga a ativar o pensamento, numa vigilância metódica. Um caso único furta-se à tirania dos costumes. Por dentro da sua rebeldia, diverge dos costumes. Se lhe forem impostos, subleva-se contra os costumes. Prefere ser o fortuito amparo de ninguém.

As vigas reforçadas trazem o ferro fundido para empossarem os alicerces. A sua reputação é incontestável. Sem eles, as pessoas não tinham azimutes e perder-se-iam, errantes. Seriam como náufragos a dar à costa sem saberem do seu paradeiro. A causa das coisas não se alimenta de pesares ou de semelhanças cabalísticas. Façam-se as perguntas que tomarem conta do peito, as perguntas que contêm a sua própria voz. Não interessa saber se são as perguntas certas. Ninguém saberá ao certo se uma pergunta é acertada – ou como definir uma pergunta certa. 

Se for preciso, que se alistem no grupo dos párias, onde são acantonados os que não seguem os costumes. Não haja pudor em admitir que se é caso único. Salvaguarde-se que a singularidade do caso não se confunde com um ensimesmar. A deriva narcisista não quadra com o reconhecimento de um caso único. Não são precisas sentinelas a tutelar o pensamento, impedindo-o de se curvar perante a inércia. 

A alma desembaraça-se das suas prisões mentais. Tanto é suficiente para bordar as costuras que delimitam a singularidade. O demais fica por conta do avulso que for o idioma da superfície. Não se antecipem esses alinhavos, que a empreitada esbarra na natureza do avulso. O que conta é deixar a alma por sua conta, desalfandegada de estribos que limitem a sua ação. Caso contrário, ninguém é um caso único.

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