- Guardemos a porosidade das expressões que entram para o património do idioma. Depois, como falantes do idioma, somos seus tutores. Não questionamos expressões idiomáticas. Somos apenas os seus praticantes.
- Não sei dessa acrítica. As palavras valem pelo que trazem de intrínseco. Não são “verbos de encher” (para te fazer a vontade e empregar uma expressão idiomática). Não merecem ser arrastadas para o anonimato do tratamento.
- Por essa ordem de ideias, hás de questionar tudo. Tudo será fonte da tua perplexidade. Uma perplexidade corrida a precipitação contínua, tantas as dúvidas que te assaltam.
- Para não ser um peão arregimentado nessa vacina de inércia, não uso expressões idiomáticas. Faço-as corresponder à banalização da fala. As palavras também tropeçam na armadilha do lugar-comum. Os fracos é que precisam de se agarrar aos lugares-comuns.
- E como convives com essa dissidência?
- Não é mal que me apoquente. Uma dissidência assim terçada funciona como consolo.
- Não temes que te vejam como um enjeitado, um apóstata na sociedade que te acolheu?
- Não pedi para a sociedade me acolher. Confiro as regras de convivência, pois sei que a pertença, um módico de pertença que habilite uma existência sufragada pela serenidade, o exige. Nada disso colide com o pensamento insubmisso que se ajeita contra as palavras domadas por nomes sem rosto que ditam o seu significado.
- Desconfio que vives um sobressalto contínuo.
- Dou-te um exemplo: por que se determinou que os mitómanos precisam dos dentes para serem abjurados? Não é convenção dizer-se “mente com os dentes todos”? Como se fosse preciso os dentes para exercitar a mentira. Quem tutela a voz não são os dentes, é a língua e as cordas vocais alojadas na garganta. Pergunto se não faria sentido convencionar “mente com a língua toda”.
- Fico admirado como consegues autopsiar as palavras que se amontoam numa frase. Nunca tal me tinha ocorrido.
- Porque te acomodas com as frases feitas e não interrogas as palavras que nelas se compõem. Mas não fico por aqui. Que dentes são propícios à mentira? Os dentes definitivos, que substituíram os dentes de leite que irromperam na infância? Excluímos as próteses que substituíram dentes entretanto apodrecidos? E os dentes arrancados aos maxilares, venais exemplos da dissimulação, perdem-se no lixo onde são depositados, como se, nesse ato, as mentiras neles contidas se evaporassem e deixassem de contar para as falácias que compõem as vidas de quem mente?
- Tanta elucubração por um punhado de palavras! Se as palavras fossem seres animados ficariam estarrecidas com a tua minuciosa anatomização.
- Assim o crês? Cesariny teria escrito “no riso admirável de quem sabe e gosta/ter lavados e muitos dentes brancos à mostra” se se lembrasse que um mitómano mente com os dentes todos?
- As palavras são maleáveis. Elas transbordam do seu sentido literal e ganham novos sentidos. As metáforas são o melhor processo de enriquecimento das palavras. Desapegam-se do seu sentido literal.
- Se formos tementes dos mitómanos – porque a mentira só é descoberta (se for descoberta) depois de cometida –, o melhor é só confiar nos desdentados. Ao menos, esses não têm dentes para mentir. Os gurus dos serviços secretos deviam desistir dos testes de polígrafo; deviam ser dentistas a separar o trigo do joio. E um mentiroso profissional sempre pode disfarçar a sua condição se intencionalmente prescindir da dentição.
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