1.10.21

Uma teoria sobre a abjuração dos heróis

David Bowie, “Heroes”, in https://www.youtube.com/watch?v=lXgkuM2NhYI

Este texto podia começar pela seguinte interrogação: quem precisa de heróis? Ou, talvez numa declinação, encerrar alternativa formulação: por que são precisos heróis?

É recorrente o sentir maioritário do povo que se apazigua quando, numa encruzilhada do tempo, um herói desembarca no palco onde todos convivemos. Os heróis serão necessários para desempoeirar o desalento que goteja na modorra que traduz os tempos normais. Ou para dissolver a ferrugem que se apodera das fundações que cimentam o grupo à custa de uma crise de personalidades que endossa um sentido de orfandade ao grupo. Os homens providenciais são bem-vindos. São eles que dão rumo ao futuro, inventando as oportunidades que estavam encerradas pelas sombras que se haviam apoderado do horizonte.

Quando as pessoas atravessam um período que se assemelha à confirmação de um apocalipse, a urgência de heróis é epidérmica e heurística. No meio da desorientação, do caos que magoa a mais funda ossatura, os homens e as mulheres salvadores são a candeia que promete extinguir as trevas instaladas. A pandemia encaixa-se neste retrato. Sobretudo quando as vacinas foram descobertas e começaram a ser inoculadas, inscrevendo na agenda mental das pessoas uma data para o lento regresso a alguma normalidade (da normalidade a que estavam habituadas). Impunha-se um plano para ninguém ficar para trás (entre os que quiseram ser vacinados). Era a franquia da muito prometida imunidade de grupo, à boleia das explicações técnicas dos peritos e de elas serem convincentes para a população restante. 

Ao início, foi escolhido um homem do aparelho do partido do governo para definir e comandar a estratégia. Não levou muito tempo a ficar patente a sua incapacidade (e os malefícios da endogamia partidária). Seguiu-se um militar da marinha que pôs o processo nos eixos. O país passou para o top das estatísticas da vacinação que nos punha longe do ferrão do vírus. O militar começou a cativar a simpatia da população. As declarações de agradecimento multiplicaram-se. A comunicação social, sempre atenta às preferências do povo, não ficou indiferente ao vice-almirante. A sua vida começou a ser esquadrinhada porque era preciso traçar o seu perfil. As entrevistas de cariz pessoal e intimista também conheceram os seus dias. O vice-almirante fundia a pose militar com a lhaneza de um homem que é tão homem como os outros, vulgares e cheios de fragilidades. A admiração pelo vice-almirante quase não tem precedentes. Seria preciso um grande esforço para lembrar tanta admiração por uma personalidade na História recente.

Para os que acreditam em deus, e para que que precisam de acreditar em deus, os heróis são os embaixadores de deus. Visto de fora, pouco os pode diminuir mais. A confissão da nossa fragilidade não pode alimentar o messianismo em que nos depomos. 

(Uma derradeira observação: não é um lugar confortável o exercício especulativo de nos colocarmos no lugar do outro, mas as lições da filosofia não se perdem quando a teoria teima em não corresponder à prática. Isto para especular – outra vez – o que faria se minha fosse a posição do vice-almirante quando sentiu a voz unânime que o entronizou na condição de herói e leu as hagiografias escritas a seu respeito. Não deixaria que os outros me colocassem nesse pedestal. Não me exporia assim, nem deixaria que outros assim me expusessem. E se insistissem, pela carência urgente atrás identificada, seria, se preciso fosse, de uma brutidão inapelável só para se convencerem que estou na antítese da heroicidade. Um homem não pode negar a necessidade de heróis nos outros se não recusar os apelos para que aceite ser herói.)

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