O mundo não acaba. A noite não povoa a pele com pesadelos arrepiantes. As palavras passaram a ser mais importantes do que (ó modismo irritante) os algoritmos. E o mundo é que não acaba, contra as notícias, infundamentadas, das profecias que semeiam apocalipses. As pessoas habituam-se a sê-lo. Continua tudo como dantes.
Contra as piores desesperanças, uns vultos acordam maldispostos e colhem do futuro ventos sorumbáticos que prometem más sementeiras. As pessoas amedrontam-se: enquanto os regentes, na sua melhor política de RP, ajuramentam tempos que são melhores quando vierem emparelhados com o futuro (mas “o mal é que o futuro nunca mais chega”, na voz seca dos escorraçados), os vultos teimam em ser agentes a soldo de distopias que açambarcam o futuro. E ele continua a dizer que o mundo não acaba.
(Murmurando logo a seguir, sem que ninguém o ouça, que o mundo não acaba pelo menos enquanto ele puder testemunhar a favor do mundo.)
Os vigilantes estremunhados podem fingir que não se cansam. Pousam os cotovelos na madeira gasta que habilita a varanda do alpendre e escutam as vozes da paisagem. Sabem que a paisagem é a caução do mundo, o seu melhor rosto. À sua volta, as pessoas não se deixam hipotecar pelas persistentes notícias do mundo enlutado, ou dos maus hábitos que se saldam pela adulteração dos procedimentos ensinados pelos profetas da boa diligência. São compradores de milagres, mas não ostentam a condição.
Se ao menos se soubesse inventariar o chão minado, seria mais fácil acordar para as manhãs sucessivas. E ele diz, insistentemente, “o mundo não acaba”, muito embora esteja colonizado pelo que os profetas da boa graça apelidam como “maus exemplos” (sem alguma vez dizerem o que é um bom exemplo, só para termos os termos da comparação). O chão minado só é problema depois de detonadas as minas. Até lá, finge-se que o chão não é tutelado pelas minas.
Os compradores de milagres parecem anestesiados. Só acordam da anestesia quando uma parte de si é expropriada pelas cicatrizes que o futuro teima em deixar, quando chega a sua vez. Talvez por isso sejam compradores de milagres.
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