10.6.22

A dívida sem credor

Andrew Bird, “Make a Picture”, in https://www.youtube.com/watch?v=4XdqCjtveTw

A fachada decadente esconde outros encantos. As pessoas passam pela fachada assim gasta e não consideram o edifício. É um segredo bem guardado. Só um punhado – os mais perseverantes e os que esbarraram num acaso – conhece o interior do edifício e as relíquias que ele conserva.

Às vezes, a insolvência é apenas um disfarce para a posição bem estabelecida. Escondem-se, para não serem incomodados com a convocatória da indulgência a favor de terceiros. Admitem, em segredo, a avareza e a imprestabilidade para serem mecenas. Para não serem açoutados em público, exibem uma modesta forma de vida quase como se estiverem subordinados a um voto de monástica contenção do consumo. São indigentes por critério, maltrapilhos por oportunismo. E às vezes, há quem transborde das capacidades materiais para exibir um modo de vida sumptuoso, todos os luxos pagos com dívida que é encomendada para pagar dívida que vem de trás. 

Entre o muito querer esconder e a abastança mitómana, sobra um manto de indiferença. É pelos extremos que a observação se conduz, por mais que a maioria em silêncio que se dedica a observar os extremos seja uma maioria e não se encontre equidistante dos polos. Os que se anexam à maioria não escondem o arrebatamento pelos que se simulam eus que não são em concursos de bem-falantes sedutores, preparados para dar uma resposta qualquer às demandas. Não conseguem resistir ao apelo do meio social ou à convocatória do dinheiro (todavia, escondido mal consegue ver a luz do dia). Querem ser aspirantes a aspirantes de gente bem-sucedida. Mesmo sabendo do estatuto a que aspiram ser uma mentira por dentro de outra mentira.

É neste sonho contínuo que se fabrica a argamassa do grupo. A pertença não se subleva. Nem perante os avaros que escondem fortunas e procuram disfarçar a exuberância, num disfarce colocado por dentro de um disfarce como modo de garantir o anonimato; nem ao testemunhar a vida radiosa e frívola dos que empurram com a barriga o futuro para um futuro ainda mais distante. Não escondem que dariam o que não têm para serem devedores de uma dívida sem credor (ou, pelo menos, assim fazerem de conta).

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