17.6.22

Longa-metragem (short stories #383)

Khruangbin, “So We Won’t Forget”, in https://www.youtube.com/watch?v=lo4KMGiy--Y

          Um vazadouro. Onde eram deixados os despojos dos dias órfãos. Alguém se lamentava que a vida é uma longa-metragem, excruciante. Protestava contra a câmara lenta que conduzia a vida. Se fossem sondáveis as sílabas desemparedadas, encontrava-se um entendimento da existência sem relação com a marcha do tempo. Ninguém parecia satisfeito. As páginas seguiam-se e não havia tempo para a poeira, que ficava suspensa nas promessas que não encontravam fundamento. Era como se fosse preciso aparar as arestas dos dias para ficarem à prova de bolor. Ao contrário das melhores notícias gastronómicas, os bolores que aderem às vidas são uma jura de decadência. Quando se agiganta o tempo no quadro de uma longa-metragem, os sobressaltos são multiplicados à dezena, parecem mais do que a conta em que são medidos. Ou são as pessoas que têm um entendimento distorcido dos acontecimentos. Ampliam os contratempos e desvalorizam o seu contrário. Entendem que os acontecimentos fortificantes, que ficam marcados para memória futura, são o produto válido da sua existência. Um mínimo denominador comum. Não servem para aprovar o orgulho. Comparados com as importunações, os acontecimentos de que se ufanam ficam à míngua. Tornam a existência uma longa-metragem que passa das marcas. Um arrastar do tempo, detonando as miragens que podiam arrecadar esgares de contentamento. Contudo, insurgem-se quando alguém é precocemente arrancado à vida. Protestam contra a insidiosa curta-metragem que cerceou a existência. Não dão conta do perpétuo desagrado com as pontas soltas que aparecem nas extremidades. Uma curta-metragem é exígua. Uma longa-metragem é excessiva. São incapazes de determinar o justo equilíbrio. Não se podem pronunciar sobre princípios gerais se nem nos seus pessoais casos são competentes para apurar a justa medida. Não reconhecem a injustiça do tempo que os rege. Por mais demorada que seja uma vida, uma longa longa-metragem pode equivaler a uma vida inteira que ficou por viver.

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