7.6.22

O verdadeiro homem de esquerda só gosta de peões quando joga xadrez

Little Simz, “Woman”, in https://www.youtube.com/watch?v=zHGf6tmnLYE

As frases ambíguas são um polímero de mal-entendidos. Na possível pluralidade de interpretações, podem sitiar quem as pronuncia contra a parede das execuções sumárias (sobretudo se forem correligionários a abjurá-las). 

Quando um homem ou uma mulher de esquerda esbraceja a favor da sua progressista condição, afirmando só gostar de peões quando joga xadrez, quem o treslê pode entender que fora do xadrez não traz os peões à lapela das preferências. E, todavia, o esquerdista apenas terá querido afirmar, na lógica intrínseca da luta de classes que continua a ser a sua candeia, que das peças do xadrez as únicas de que gosta são os peões. A militante esquerdista distancia-se da sumptuosidade do rei e da rainha (é geneticamente contra a monarquia), vitupera o bispo (o ateísmo incondicional recusa privilégios ao clero), e não morre de amores pela torre e pelo cavalo (no primeiro caso, porque é uma construção com laivos aristocráticos e, no segundo, porque a coudelaria tresanda a marialvismo atávico).

O militante de esquerda não pode ignorar o jogo de xadrez. Muitos dos mestres que contribuíram para a evolução do xadrez eram soviéticos. Formaram um escol que, nos tempos nada áureos da guerra fria, serviu de instrumento de confrontação e de exibição da superioridade do “socialismo científico”. Um imaginário que ainda continua a provocar saudades em muitas pessoas.

Estes diligentes adeptos das esquerdas deviam reivindicar uma mudança das regras. Pois os peões são reduzidos à condição que os vulgarizou, subalternos perante a maior latitude de movimentos permitida às demais peças do xadrez. O que levará a militante de esquerda a resgatar a lógica da luta de classes. É inaceitável que os peões não tenham a mesma perimetria de movimentos. Em homenagem à igualdade – pois as esquerdas arrogam-se ao papel de guardiãs da igualdade, e convém não perder de vista esta mnemónica –, os peões não deviam ter as grilhetas que condicionam os seus movimentos. O xadrez é um jogo aristocrático e permeável à sua qualificação como instrumento fascizante. Perpetua as desigualdades que emprestam lastro à existência das esquerdas. Afinal, é do interesse das esquerdas que o xadrez conserve as suas regras. 

O que não se pode admitir é a tresleitura das palavras do militante de esquerda. Ele existe para zelar os interesses dos peões em todas as circunstâncias da vida, pois os peões são os desprotegidos que carecem de proteção. Dele não se entenda que fora do xadrez não acautela os direitos adquiridos, e por adquirir, dos peões.

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