27.6.22

Pastelaria (sem ser Césariny)

The Smile, “Thin Thing”, in https://www.youtube.com/watch?v=J1_Cf55cS8I

Era por onde as pessoas diziam “outnumbered”. A lógica dos números, outra vez. Era na pastelaria que ouvia os turistas dizerem, com um rasgado sotaque americano, “outnumbered”. A entronização do turismo como indústria expoente tinha mudado as convenções. Havia lugares na cidade em que se ouvia falar mais idiomas estrangeiros do que português. Os mais velhos não disfarçavam o incómodo e o enfado. Ouviam falar aquelas línguas ininteligíveis e sentiam-se forasteiros. Vilipendiavam o turismo. Fugiam dos lugares que eram apresentados aos turistas como os lugares que não podiam deixar de visitar. 

O edil exultava quando lhe falavam dos turistas em barda. Sabendo que fora uma bandeira que empossou na campanha eleitoral – e desfeiteada a peste que suspendeu as pessoas durante um período – trazia a proeza à lapela. Ninguém o calava. E ai de quem ousasse criticar a massificação do turismo e uma certa desidentificação da cidade, que logo os críticos eram arrumados a um canto habitado pelos hereges. Um conselheiro perguntou ao edil se não se incomodava com a superioridade de número dos forasteiros. A sua carreira meteórica na política local terminou naquele dia. (A tolerância não era o forte do edil.)

Até os mais jovens e os que aceitam a cidade cosmopolita começavam a mostrar saturação. Começavam a usar a palavra “outnumbered” como linguagem de código (o edil não falava inglês). Aos poucos, uma maré sem rosto começou a cobrir as paredes da cidade com “outnumbered”. Depressa o movimento ganhou espessura, continuando mergulhado no anonimato. A mensagem passou as fronteiras e os futuros turistas começaram a procurar outros sítios. O equilíbrio de números começava a ser reposto. O desnorte apoderou-se do edil, que começou por formar uma brigada que apagava o “outnumbered” das paredes. Já não foi a tempo de travar o êxodo antes do tempo de turistas que não chegavam a sê-lo.

Um dia, ao entrar na pastelaria onde antes os idiomas estrangeiros se sobrepunham ao português, o edil perguntou ao dono como andava o negócio. Que a faturação tinha diminuído, é verdade, mas estava contente porque os locais voltaram a poder frequentar o café – respondeu o dono da pastelaria. Iracundo, o edil perguntou se não se importava de ter lucros mais baixos. O dono da pastelaria disse que não, desarmando o edil que saiu porta fora, mal-educadamente. 

Agora, as paredes da cidade já não eram presenteadas com uma palavra em inglês. Em entrevista com voz disfarçada e rosto escondido, os promotores do movimento inorgânico esclareceram que não eram contra o turismo nem fora sua intenção banir os turistas. Apenas queriam advertir para um certo sentido de proporções. Uma cidade que se adultera para receber os forasteiros deixa de ser a cidade que esteve na origem do chamamento dos turistas. E deixava de ser uma cidade que convocava os seus a saberem da sua pertença. 

Bem disso sabia o dono da pastelaria. Nos “anos de ouro do turismo” (foi assim que o edil cunhou o período), o dono da pastelaria mudou as receitas de doçaria tradicional para a adaptar aos forasteiros. Perdeu o pau e perdeu a bola.

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