Fala-se de expropriação. É preciso reinventar o significado. Expropriação de toda uma massa corporal, de uma alma inteira, não é a usurpação da vontade do expropriado. Pois ele está capaz de soltar fogo de artifício como ato celebratório. É nestes termos que se coloca a demanda. Uma vontade feita à medida da vontade outra, com o obséquio da reciprocidade.
Multiplicamos duas vidas por um algarismo que se parece com um oito deitado. Na fusão operada, somos sangue próprio com os nossos nomes nele tatuados. Somos corpos preenchidos pelo sangue que traz a identidade do outro. Como se cada um de nós, virado do avesso pela exposição benéfica à alma do outro, soubesse de metáforas que eram dantes desconhecidas. Sabemos fazer as estradas que acolheram o que quisemos ser. Atualizámos os dedos diligentes na geografia atravessada pelos nossos nomes. Arrancámos às raízes os contratempos e somos ufanos do nosso desembaraço.
Com o salitre das mãos vertemos as sementes que fruíram numa vasta planície cheia de flores, onde se traduz o poema vivo, o poema contínuo, em permanente atualização. Todos os dias, no que fazemos nosso solar calendário. Este é o nosso atlas, os nossos nomes não escondidos. Não somos reféns das cicatrizes. Há uma fortaleza que habitamos no sortilégio dos luares de que somos tutores.
Da palavra fazemos contrato. E a palavra assim avivada é a aspiração máxima que atravessa as nossas fungíveis almas. Pedes-me dança e eu, desajeitadamente, danço. Pedes-me alma e sei que ela foi expropriada porque a tua foi a mim expropriada. Dir-se-ia, sem o rancor do destempero, que virámos as almas do avesso para serem vestidas pelo outro. Até os silêncios são uma gramática vívida, pois nos silêncios sabemos dar corpo às palavras de que eles são biombos. Vestimos as silhuetas do mundo a que deitámos mão. Desses lugares levamos mais um pouco de nós para memória futura, também o cimento que se ordena nos esteios em que fundeámos.
Três mil seiscentos e cinquenta e dois dias ensinaram a ser um eu que não sabia existir, com a aquiescência do que soubeste revelar desse eu. Estes são os nossos olhares, sem peias. Os corpos que se deitam num amplexo e se alimentam reciprocamente. O idioma do desejo. O labirinto de que somos mecenas. Desinventariámos os medos. Ultrapassámos a noite com o pressentimento da manhã aurida. Fizemo-nos reis ou imperadores ou emires de um domínio de que somos únicos suseranos – os únicos a saberem do seu paradeiro.
Fizemos o tempo, com a ajuda dos miados que o cinzelam, sem critério. Pois as regras a que nos sujeitamos são as desregras que fruem das árvores primaveris que precedem o olhar. Ambicionámos o querer imorredoiro. Um amor destes não se mede através do tempo.
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