20.6.22

Se a humanidade fosse extinta, ao menos resolvia-se o problema da fome (relicário de cinismo e outros dispersos enfatuados)

Dirty Three, “Sue’s Last Ride” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=NzoAwcg0gsQ

Não vale a pena sopesar dramatismos, porque esse é um mar que não traz enjoos. Um exemplo: os fanáticos da causa ambiental escolhem a humanidade como inimiga a abater (desconta-se, desta árvore de generalidades, uns quantos ramos que alojam os ativistas). A humanidade seria a pior inimiga de si mesma, num processo que podia ser sintetizado numa autofagia. Se a humanidade fosse extinta, ao menos deixar-se-ia de falar da fome como úlcera mundial. 

Evoquem-se os viciados de diversa estirpe. Eles são os primeiros a saber da sua condição. Podem não dar um passo para se amotinarem contra a dependência enquanto continuarem a ser dependentes. Estão no seu direito. Exercem a soberania da vontade. Outros, mais preocupados com o bem-estar da comunidade (e com os cofres em que navega o erário público), a meias com uma irreprimível tendência para exercem superioridade moral, mobilizam-se contra variegadas dependências que, quase sempre, esbarram com os “bons costumes”. E depois anuem que vivemos numa sociedade liberal. (Sem esquecer que a palavra “liberal”, como conceito, é dos mais vilipendiados pela confusão a que se presta e pela sua tresleitura.)

Se os lugares-tenentes das artes não fossem parciais, admitiram a concurso todas as manifestações de arte sem cuidarem de saber dos pergaminhos que o artista traz a tiracolo. Costumam ser curadores dos mais nobres valores, protestando contra o “fascismo” e outras excrescências herdadas do esquecimento da História. Mas usam uma apurada dose de seletividade. São os primeiros a negarem o que dizem defender ao marginalizarem propostas artísticas da autoria de quem não está no seu perímetro. Pela perpetuação deste código de conduta seletivo, os candidatos a artistas são forçados a habitar os armários que fornecem o devido amparo situacionista. 

Os ricos devem ser combatidos. São leais à avareza, defeito que justifica a sua abjuração. São egoístas e insensíveis aos problemas sociais que continuam as iniquidades. Combinam bem com a frivolidade. Não são dados às artes (ou só o são enquanto investimento, emprestando uma materialização a algo que devia ser imune à lógica do dinheiro). Os ricos são vigiados de perto pelos justiceiros que não se esquecem da exigência da igualdade e não sossegam enquanto a utopia (da igualdade) não for confirmada. Eles distinguem-se pela denúncia dos ricos e na exigência de maior justiça social através de um agravamento dos impostos que expropriem (com o manto da legitimidade política) uma fatia maior da riqueza dos ricos. Às duas por três, encontramos esses juízes de superioridade moral, os mecenas da igualdade, afogados em pequenos prazeres burgueses que os tornam permeáveis às suas contradições internas. 

Não é por acaso que o povo (agora redenominado, pelo mais elevado magistrado da nação, em glosa de Fernão Mendes Pinto, “arraia-miúda”) cunhou o lema “olha para o que digo, não olhes para o que eu faço”. As palavras e as ações voluntaristas são pedaços de enamoramento que não podem ser contestados pelo espólio da incoerência selada pelos factos, que devem ser meticulosamente ocultados. 

A incoerência é um direito tão nobre como o direito a ter direitos, ou ideias.

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