16.6.22

Talvez

The Cure, “A Forest” (live at Werchter Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=SXgN-7A1MXM 

Se as pernas corressem mais do que o corpo talvez a manhã se sobrepusesse à noite. E então, os vultos seriam defenestrados à porta do tribunal, onde procuradores solícitos desavisam os medos. Tudo seria um imenso tabuleiro de possibilidades. Tudo, envolto em dúvidas persistentes, pois as possibilidades são o cimento do talvez que se adiciona às proclamações.

Os cafés estão povoados por gente em desocupação. Passam o tempo, em vez de o matarem. Talvez saibam que as expressões vulgarizadas nas bandeiras das convenções são mortíferas para o idioma. Pior, talvez sejam mortíferas para o objeto que se deseja proteger. Só uma pulsão de autofagia justifica que alguém mate o tempo, a menos que esteja cansado do tempo e o considere uma ferida cheia de cal viva. Se matassem o tempo podiam ser arregimentados por um dos maiores crimes que a humanidade pode cometer, sabendo-se do tempo como um tão escasso bem. 

Lá fora, na esplanada, as pessoas amesendam de frente para o jardim. Talvez estejam a comtemplar o bucolismo do jardim que foi premiado, em tempos. Ou talvez estejam apenas a libertar o pensamento, o olhar sem paradeiro, ocupado pelo vazio. Avisam o olhar para os encantamentos de um jardim frondoso, as suas árvores centenárias ostentando copas abundantes que repousam sobre troncos que nem os braços do atleta de maior estatura conseguem abraçar. Talvez o jardim esconda segredos agora sem memória, mas se os esconde é porque não têm de descer ao conhecimento público. Se assim fosse, era como se alguém, intendente das coisas comuns, ordenasse a banalização do tempo.

Por vezes, o entardecer parece que se demora. É porque a companhia, na esplanada, alcança o privilégio de demorar o tempo. Há pessoas que conseguem imortalizar um fragmento do tempo. Talvez uma palavra adorne as emoções, como emulsionante de uma quimera em preparação. Os corpos nem dão conta que a noite já passou, anestesiados pelo torpor que deles toma conta. Talvez o tempo seja apenas uma ficção, em vez de uma fruição. E nós, por ele domados, em seu território sitiados, deixamos passar os instantes que somados o perfazem sem sabermos ser todo o potencial prometido que em nós se constitui.

Não há nenhuma circunstância que deixa a diligência das hipóteses à mercê da corrosão. Não se hasteiem certezas, por mais que se enquistem nas convicções. Um sinal persuasivo depressa se transforma em ponto de interrogação, somando um zero à certeza assim liquescida.

Andamos, de talvez em talvez, rejeitando sofismas, levantando os sucessivos pisos da indiferença.

Sem comentários: