28.6.22

Corrosão (vidas ainda)

Dandy Warhols, “Godless”, in https://www.youtube.com/watch?v=LduipA_XUJ8

Tirando da pele as rugas tatuadas, descontando do corpo os hematomas que têm a serventia do tempo a desfavor, arrumando para o lado o olhar desfocado se nos olhos não houver os óculos assistentes, excetuando o pensamento que foi mudando, dir-se-ia tudo ser igual.

O reduto das ilusões pode reinterpretar o corpo e alma de modo que passe a ideia de que não mudaram com o tempo, que, esse sim, é que mudou as circunstâncias. Pode-se invocar uma certa suspensão de tudo que trava os relógios só implacáveis com os outros. Pode-se alinhar com a mentira de si próprio e acreditar que a indiferença do tempo é a marca registada que desmente as convenções. Imaginar nunca foi o selo da indigência.

A corrosão que se instala nas partes sensíveis do corpo não deixará de ser notada. Pode ser aplacada se o corpo e a alma não capitularem à versão irremediável da vida que fica sempre mais próxima da morte à medida que vai emoldurando os dias consecutivos. A corrosão é a prova desse tempo que se subleva contra os corpos e as almas. Uma mnemónica atempada para que o tempo não deixe de ser servido no seu lugar próprio. Pois, de outro modo, no templo onde fermentem as ilusões abonadas por engenheiros das almas e por druidas que prometem a juventude imorredoira, o aterrar do corpo na sua inata descapacidade será mais doloroso.

Não se diga que temos de nos entregar passivamente a um processo que extravasa a vontade. Seguimos pelos corredores estreitos de um tempo que de si se estreita, mas não deixamos de correr. Se a moeda válida for o valor incomensurável da vida, não será a aparição das rugas tatuadas na pele, ou os crescentes hematomas que endurecem a alma, ou o olhar turvado que conspiram contra a necessária procrastinação do tempo. E se disserem que a corrosão é o fruto do esquecimento dos deuses, oponham-se ao argumento: os deuses não sabem o que é a corrosão. A corrosão não averba a decadência.

Há sempre um módico de vontade própria que não se apaga do idioma em que se terça o tempo. Somos seus cativos e entendemos a corrosão como uma medalha de diligente comportamento, a sagração da vida que não cessa de procurar os deslimites que lhe sejam caucionados.

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