2.6.22

E deus criou o espião

The Strokes, Eddie Vedder and Josh Homme, “Mercy Mercy Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=kBS5tUrVYi0

Primeiro, em forma de homem. Porque o Homem, o espiado, está repleto de fragilidades e a estrutura que o Homem inventou para se domesticar (muito provavelmente sob supervisão oculta da entidade divina) precisava de meios para refrear os instintos selvagens que nunca deixaram de trespassar a humanidade. O Homem deve ser conduzido pelos bons caminhos e deus convenceu-se que devia assistir o Estado nesta incumbência terrena. 

O espetáculo não é recomendável. Gente a espiar gente em nome dos negócios do Estado e da sacrossanta soberania, que sempre que os interesses nacionais são esgrimidos é como esbarrar num dogma – e os dogmas não se interrogam, nem sequer deles se admitem dúvidas a concurso (como bem sabem os crentes das religiões). Deus criou o espião para dar conta das fraquezas do Homem e para as corrigir, por meios persuasivos se eles forem precisos. Ainda não se sabe se os espiões espiam sob tutela de deus. Os poucos que lograram a interrogação não obtiveram resposta à demanda.

Deus sancionou um comportamento que os manuais reprovam:  não espiolharás a vida alheia – se não é mandamento divino, anda lá perto. Admite-se exceção se for em favor dos interesses da nação, mesmo que a sua invocação não venha adicionada de fundamentação, que noutras circunstâncias seria pressuposto de legitimação. Deus conspira a favor do Estado. Ao inventar o espião e ao permitir que ele espie sem que o comum dos mortais dê conta que está na presença de um espião, deus está ao serviço do Estado.

Depois, não satisfeito, deus inventou o espião em forma de algoritmo. E a espionagem espalhou-se a tudo o que mexe, ficando o princípio geral da intrusão, de que ninguém pode dizer que escapa, vertido em regra de ouro. A espionagem desmaterializou-se e avivou-se de tal forma que entrou no quotidiano, na nossa ossatura. Com o beneplácito do tempo e da habituação forçada das pessoas, o sentido da palavra “espionagem” vulgarizou-se. Em cada dia que passa, quase ninguém sabe que foi espiado, quando foi espiado, no que foi espiado e para que propósitos poderá ser usado o pecúlio da espionagem sobre si feita. E de que matéria é feita os espiões que compilam o que sobre nós foi arrancado ao segredo.

Estejam sossegados, gentios, que vos deixo uma nota de otimismo. De deus não há notícias da sua identidade. Desinquietem-se, pois. Com a mesma probabilidade da inexistência de deus, daremos conta da improbabilidade de um exército de espiões, assim incarnados ou em forma de algoritmos, sobre nós a exercer meticulosa atividade intrusiva. 

(A menos que os espiões existam e não tenham sido inventados por deus.)

Sem comentários: