(Como sabia que não tinha o dom da palavra para escrever o epitáfio, pediu ao seu alter ego para o fazer. Além disso, um auto epitáfio é um narcisismo abjeto.)
Os epitáfios são das empreitadas mais inúteis que a vida pode conhecer. A frase antecedente é irrisória: um epitáfio dispõe sobre um falecido para os que dele tiveram conhecimento e o homenageiam no cortejo fúnebre antes de o féretro descer às profundezas da terra. Dir-se-ia, para melhor retratar o sentimento, que o epitáfio é das empreitadas mais inúteis que a morte pode conhecer. O que exige outra, e imediata, retificação: a morte não tem o dom de conhecer coisa alguma.
Ultrapassadas as estéreis considerações sobre a metalinguagem do epitáfio, mãos à obra ao seu conteúdo depois de apalavrada a vida em rescaldo daquele que entrou no panteão a que pertencem todos os mortos (pois é refrão da igualdade admitir que é na morte que ela – igualdade – se sintetiza na sua pureza).
Não há motivos que sobejem para demorar um epitáfio sobre a morte deste homem. Foi passando entre os pingos da chuva, de ardil em ardil, esforçando-se por não se esforçar grande coisa, adepto confesso da preguiça compulsiva. Dele se disse em tempos que foi um homem que passou ao lado de uma certa visibilidade, todavia impedida pelo triunfo loquaz da preguiça que o colonizou e pelos poucos hábitos de higiene. A sua palavra preferida sempre foi procrastinação. Ficava adoentado só de desconfiar que podia o seu rosto, ou o seu nome, subir à praça pública. Seria como descer ao purgatório.
Não foi pródigo em generosidade. Com os que conviveram no seu arco de vida, amigos e amantes, e até os entes queridos de quem se foi desligando à medida que a idade deitava folhas do calendário pela borda fora. Não foi generoso como os carenciados de diversa igualha, entre os que manifestavam carências emocionais aos pedintes de rua ou nos supermercados. Desconfiava que a repulsa pela generosidade se estribava no princípio geral de desconfiança que o movia entre os dias sucessivos. Estava sempre a desconfiar que alguém conspirava para o ludibriar. A desconfiança metódica foi o esteio do seu atraso estrutural, da muita estrada que ficou por ser feita, do nanismo intelectual.
Andou por diferentes versões subterrâneas do mundo. Das companhias, quase sempre pouco recomendáveis à luz das melhores convenções – mas ele sempre bolçou em cima das convenções; das ideias e dos movimentos e das modas, ou melhor, no seio das antíteses dos modismos do momento, autêntico sacerdote das desmodas; das substâncias proibidas por lei, apenas porque eram proibidas por lei; da promiscuidade, para poder ser inventariado no mapa das pessoas a evitar sob pena de os costumes serem ofendidos (o que, todavia, trouxe ao seu perímetro muitos entre iguais).
Passou pela vida. Ou a vida passou por ele, como gostava de glosar, com todas as sílabas meticulosamente contadas. Dele não houve uma palavra a rimar com arrependimento. Nem um módico de angústia pelo que podia ter sido feito se não tivesse escolhido o que fez. Foi um homem absolutamente normal, anónimo no meio do anonimato. Saiu da vida exultante por saber que foi anónimo no meio do anonimato. E mortal, a comprová-lo este epitáfio.
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