Não postergues o Sísifo que se lança contra a imorredoira insensatez da sua empreitada. Saberás, a meio do dilúvio esperado, que a pele destatuada não é o melhor campo de flores. Saberás, com a demora que for necessária, que o aprovisionamento da alma não é trespassado por doses maciças de rigidez.
Fala-se do dilúvio. Ele foi avisado pelos peritos. São esperadas as habituais contrariedades. As pessoas previdentes, alardeando a prevenção que usam como critério, arrumam os pertences e constroem diques com o que podem. Os diques deviam ser perpétuos. Mesmo que a chuva copiosa não esteja nos pressentimentos, os diques travam a estouvada safra de outros contratempos. A chuva nem é um deles, por abundante que se anuncie: gostas de entregar o corpo à chuva, de o sentir colonizado pela água que com ele se caldeia.
Se usasses uma tela que apanhasse os movimentos em câmara lenta, demorar-te-ias na apreciação das gotas de chuva despenhadas contra o rosto, como depois escorriam pelo rosto por escanhoar, amalgamando-se com a barba avulsa. Se tirasses os agasalhos, o espelho seria a reverberação de todas essas gotas de chuva sedimentadas no molhado da tua nudez. Saberias que a nudez não é etimologia da vergonha: a pele averbada pela chuva seria radiosa, como se um artesão dela cuidasse como sua filigrana.
Se a câmara lenta fosse o armário do tempo, não saberias quando substituir o molhado da chuva em teu corpo pelo conforto da pele enxuta. Ficarias a contemplar os fragmentos aumentados da pele tatuada pela chuva que a transformou numa tela admirável. Pela primeira vez, serias o teu próprio narcísico. Ou talvez estivesses apenas a deixar que um Sísifo em forma de metáfora te adiasse para o resto das demandas. E tu, inebriado, à conta de violinos intempestivos, espelho do teu próprio espelho – tu, a matéria desnobre revelada em camadas lineares onde perdem validade os despojos inventariados.
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