21.6.22

Começa oficialmente a tortura (solstício de Verão)

Dry Cleaning, “Magic of Meghan” (live at WFUV), in https://www.youtube.com/watch?v=7Y2tMN30Zd0

Quando passarem catorze minutos das dez horas, pela craveira da meridiana manhã, o Verão depõe a Primavera. Para a maioria, instala-se a estação preferida. Dos dias longos, dos dias pelo menos mornos, mas se forem visitados pelo calor tórrido são bem-vindos na mesma; dos dias passados na praia; dos dias em que o entardecer se funde com a noite, sem se dar conta da penumbra que se instala à medida que um copo de vinho branco é degustado; dos dias em que as pessoas se despojam de roupas até ao mínimo exigido pela compostura, combinando com o desejo que se inflaciona na exata medida da inflação das temperaturas; dos dias em que as ruas convidam as pessoas para serem suas passageiras, deixando às casas um papel minimalista.  

E se à maioria assiste este desejo, aceite-se democraticamente que o Verão seja a estação predileta. Que aos dissidentes seja admitido equivalente direito de protestarem a sua dissidência. São os que convivem mal com a canícula, incomodados com a destilação dos corpos (dos próprios e dos seus semelhantes, que deixam um aroma pestilencial à sua passagem); os que sentem a respiração restringida pelo ar seco que parece extinguir a função dos pulmões; dos que lamentam os fogos florestais que são a má rima das temperaturas excessivas e do destratamento das florestas; dos que preferem o refúgio da casa para não terem de lidar com multidões que enxameiam as ruas e as praças e os concertos ao ar livre e as praias onde é precisa diligência para conquistar cada centímetro quadrado para a toalha. 

Uma minoria não combina com as preferências democraticamente sufragadas pela maioria. Em relação ao Verão, a maioria não consegue compreender as objeções levantadas pelos que pertencem à minoria e oferecem a sua dissidência à estação estival. Os da minoria são tratados como misantropos do tempo. A misantropia joga-se em dois tabuleiros: afastam-se da maioria que se enamora pelo Verão; e afastam-se das ruas, pois o Verão quadra com as multidões que não se oferecem em palcos válidos para a sua presença.

Os dissidentes do Verão não se escondem. Muito embora sejam atirados para o esconderijo onde se alojam os que (a seu ver) incompreensivelmente abjuram o Verão, não se envergonham de militar na ideia do Verão como tortura. Admitem que há modos de disfarçar a quentura, por mais que sejam a artificialidade intimada pelas engenharias. São os que consideram excessiva qualquer roupa contra a invasão térmica dos dias excruciantes de tanto calor; os que temem submergir em doses corpulentas de suor, reféns do mau odor tangível à sua presença; os que vivem mergulhados no mito da diminuição das capacidades intelectuais na medida inversa da subida de temperatura.

Às dez horas e catorze minutos começa a estação que devia ser metida entre parêntesis. Ou a estação que devia atear uma medida vertiginosa do tempo, para que o vigésimo terceiro dia de setembro se fizesse anunciar como se de uma breve noite se tivesse tratado.

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