22.6.22

Costas largas

Joy Division, “New Dawn Fades”, in https://www.youtube.com/watch?v=iHC2ozNKfYA

Era como se estivesse na Cornualha: a maré era invasiva quando estava cheia e depois o mar extinguia-se, deixando um amplo estuário de lodo, como se fosse o presságio de um tsunami. Um murmúrio ateado pelo vento compunha o frio que se depunha na pele impreparada. Por perto, umas andorinhas desenhavam uma coreografia desordenada e o olhar repunha-se no horizonte sem paradeiro. O lodo deixado em herança pela maré-baixa eram os despojos do futuro por haver.

A convocatória do futuro era intimidatória. Sabia-se que a incerteza arcava com a responsabilidade que alimentava o medo. Ninguém sabe nada do futuro e essa é a melhor garantia da igualdade (noutros domínios, mirífica). Em vez de apunhalar o passado pelas costas, sabia-se que era ao futuro que o fardo das costas largas era endossado.

A aproximação podia ser feita mudando a perspetiva: se são largas as costas do futuro, devia-se largar as costas do futuro, deixando-o ser na sua natural e irreprimível espontaneidade. As angústias a destempo não são critério válido. Limitam-se a medrar na combustão das angústias que possivelmente assentem no presente, ou que venham atreladas ao peso inamovível do passado. As diferentes texturas do tempo não deviam ser fungíveis – alguns diziam, uma e outra vez, como se pressentissem uma mnemónica como aval.

E, contudo, talvez fosse um erro atribuir ao futuro a condição de costas largas. O futuro não podia ser culpado do que ainda não aconteceu. O futuro, como conceito, não tem semântica. Voa na liberdade irrefreável do vento, à espera de um apeadeiro para a sua derradeira metamorfose. À espera de deixar de ser futuro, aprisionado pela circunstância e pelo tempo que o torna presente. Tornar o futuro pária pelo que dele haveria de ser recolhido era como dissolver o passado num lençol de desmemórias.

As costas largas do futuro são uma distante evocação das metáforas que disfarçam os ecos dolorosos que colonizam a vida. Sufragam os medos que precisam de cais seguros que os desfaçam em vultos sem beligerância. Se as noites se compõem no desalento do sono, o futuro arqueia-se no adiamento que se espera sem conflitos por dentro do sangue. 

As costas largas têm de ser encontradas algures.

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