Não dissessem que era fácil andar de bicicleta sem mãos. Dissessem, outrossim, que dar com o corpo desamparado no chão faz sentir dores excruciantes. Não dissessem que a liberdade se investe no engodo de quem atravessa a cidade sem freios. Não dissessem; que no fim da cidade, existe um precipício.
A prudência – uma enfermidade da sociedade convencionada – é verbo primacial no dicionário dos comportamentos. Não cometamos a loucura de trovejar a fala desembaraçada, que a ausência de contrapesos pode levar a que digamos o que não queríamos dizer. Obrigando-nos a arpoar um perdão ou a encher o peito de ar para pegar de frente as consequências desastrosas da língua desenfreada.
Pelo contrário: a prudência pode matar a efusão onde se torna genuína a ebulição de nós mesmos. Atravessamos a cidade e reparamos que não temos freios. Sabemos que a cidade encerra uma pendente no fim, onde se encontra com o rio cavado. Sabemos que a velocidade não abranda. E não fazemos nada para travar a marcha da bicicleta. Para piorar, tiramos a mão do guiador. Esperamos pelo desfecho. Esperamos pelo precipício. Para melhorar.
O enamoramento pelo previsível é um ardil. É uma compensação interior que ultrapassa os medos que esbarram no peito sempre que o desconhecido reclama uma posição no cortejo de cartas. Alguém desconfia que boicotaram a bicicleta, tiraram-lhe os travões. E quem monta numa bicicleta sem apurar se os travões funcionam?
A partir da roda livre, não há lugar ao medo. O medo foi derrotado quando subimos para a bicicleta e nos fizemos à pendente que termina com o pátio térreo sobranceiro ao rio cavado. Devemos às ruas o tapete que aformoseia uma certa loucura inebriante. Dizemos, sem falar, “seja o que deus quiser” (num raro momento de invocação divina, em completo paradoxo interior). A pendente torna-se mais inclinada à medida que a silhueta do rio se agiganta no olhar. Já não sabemos a que velocidade circulamos. Talvez circulemos à velocidade estonteante da nossa rebeldia.
Amanhã saberemos quantas cicatrizes sobram para contar a história aos netos que houver.
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