18.11.22

A chapada de deus

Mogwai, “Like Herod” (live in Sydney), in https://www.youtube.com/watch?v=CPTw44AWNWA

Deus foi chamado a intervir. 

(Alguém perguntou, ciente das modas que triunfam com a modernidade que vingou, se deus não deve ser conjugado no feminino. Não se perpetue a desigualdade de género com o beneplácito de deus, que deus certamente não estranhará a incumbência dos tempos modernos e das suas exigências. Deus não repudiaria o transformismo. Doravante, deus conjuga-se no feminino.)

Uns meliantes torceram a bondade inata da condição humana e andaram a espalhar caos e desconfiança. Tudo sob a égide de deus, mas à revelia do seu conhecimento (provando que o mito da omnisciência é só um mito, infundamentado). Quando soube das tropelias, deus armou-se do arsenal que serve de corretivo. Que esperassem as duras chapadas, os beócios que as estavam a pedir.

Confrontados com o tremendo poder de deus, os meliantes que boicotaram as serenas fundações da sociedade não se arrependeram. Foi-lhes outorgada essa possibilidade, quando depuseram perante a deus, que não escondia o seu estado iracundo. Foi dito, com a voz medonhamente tonitruante que parecia entrar pelas entranhas dos réus, que não era admissível que a conduta semeasse medo e desconfiança entre os demais, tornando-os, por reflexo condicionado, insolentemente cúmplices. Deus não só não perdoava o indecente comportamento dos que estavam perante o seu julgamento, como lhes imputou circunstâncias agravantes por serem responsáveis pelo contágio aos que, antes disso, foram suas vítimas e se tornaram também algozes por ativação do fermento da vingança. 

Deus não hesitou no julgamento, que foi célere e mordaz. Os réus foram intimados a subir os degraus que os separavam de deus para se submeterem ao seu corretivo. Deus não foi de modas. Puxou a mão atrás, a sua mão grande, pesada e espadaúda, e impôs três chapadas a cada meliante (para confirmar o lugar-comum que aviva a memória que três foi a conta que deus fez). Atordoados, e com a marca da mão de deus tatuada no rosto, os condenados saíram, um a um, do altar divino. Ninguém podia garantir que não reincidissem. Ficava por provar se as chapadas de deus os demoveu da maldade.

Havia um pormenor que não tinha cabimento: deus, na sua infinita indulgência, não acalenta a beligerância das chapadas nos frágeis súbitos do seu reino, por mais que estes cicatrizem a fragilidade de outros. Posterga a punição, pois é a tolerância que o faz deus. Deus não foi feito para esbofetear os que incomodam o seu reino de infinita bondade

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