Acompanhar a atualidade pode ser uma empreitada desagradável. Comentá-la pode implicar danos para a saúde mental do comentador. A atualidade está a atravessar um estado lastimável (e quando assim não foi, que se atire a primeira pedra – et pourtant...). Dir-se-ia: um estado comatoso, por causa do exacerbar de opiniões a propósito da subida a palco de personagens que não se cansam de serem controversas, personagens que não alinham pelos códigos de conduta política a que estávamos habituados.
A polarização, em si, não é contraproducente. Venham as diferentes ideias, venham os contributos lúcidos para um debate que não pode, não deve, ser feito de posições exacerbadas que alimentam posições exacerbadas do lado contrário. A desonestidade intelectual sempre teve o condão de ser má conselheira. Ultimamente, a desonestidade intelectual tem passado da conta. Como seria de esperar, os seus promotores não dão conta do dolo e do dano.
Uns idiotas de extrema-direita ocuparam o poder (e outros ainda ocupam). Subiram ao poder sem ser à conta de golpes de Estado. Foi o jogo da democracia que franqueou as portas do poder. Receberam a caução de uma maioria de eleitores. Que exibam, às vezes pornograficamente, uma propensão para a antítese da democracia; ou que sejam autores de declarações insuportavelmente racistas, xenófobas, sexistas ou tresandando a intolerância (e a fanatismo) religioso, é algo que causa um tremendo esgar de desprazer. Já é matéria-prima de sobra para andar arredio da atualidade.
Para quem se opõe a estes (assim por si alcunhados) neofascistas, pode ser conveniente acantonar toda a direita à direita radical. Mas é um exercício espúrio, trespassado pelo pior que a desonestidade intelectual transporta. Tanto tenho uns como outros na conta dos radicalismos que, sem serem solução, contêm em si uma fonte de problemas.
A polarização nas eleições brasileiras foi o exemplo mais recente que constitui um irrecusável convite para andar longe da atualidade, porque a atualidade, talvez mais do nunca, não está de boa saúde e não se recomenda. O Professor Boaventura verteu em prosa, quase em cima da revelação dos resultados da eleição, um exercício de adivinhação, esbracejando com o fantasma do fascismo reprimido que não iria aceitar a derrota eleitoral. O cenário é dantesco: “o golpe de Estado continuado”. Como se fosse um cartomante, o sociólogo pressagia maus tempos para a democracia. Os fascistas não descansam enquanto não liquidarem a democracia. Vejam como será o futuro, segundo o Tarot virado pelo sociólogo coimbrão:
“O golpe de Estado continuado vai entrar numa nova fase. De imediato, será provavelmente a contestação dos resultados eleitorais para compensar o fracasso dos golpistas em não terem conseguido os resultados que pretendiam com as múltiplas fraudes que praticaram. Depois, o golpe assumirá outras formas, ora mais subterrâneas com a utilização do crime organizado para intimidar as forças democráticas.”
Do Porto chegou a palavra contundente do historiador Loff. Vigilante atento da democracia (entendida como o regime que zela pelos desfavorecidos, a plenos pulmões negando provimento à igualdade), diagnostica o problema: “[a]o terem derrotado o bolsonarismo numas eleições, os brasileiros demonstraram, não que este não era fascista, porque o é, mas que é possível resistir-lhe. E derrotá-lo.” Loff pareceu não perceber a insanável contradição de termos: se um fascista o é, como se pode permitir a veleidade de uma derrota eleitoral (sempre uma probabilidade no horizonte)? Como pode um fascista que o seja admitir o escrutínio do povo, sabendo que pode perder as eleições?
Carmo Afonso, a cronista do momento, chama a si outro naco de arrogante desonestidade intelectual ao lamentar que quase metade do eleitorado tenha confiado num fascista, rematando, com a soberba própria dos que esculpem a sua própria lápide intelectual: “[a] nossa situação, enquanto humanidade, é preocupante e não há como fugir a esta constatação.” Viva as eleições, desde que elas elejam o “candidato certo”; ou, também se pode alvitrar, viva as eleições, desde que a elas só possam concorrer os que por estes tutores da democracia não sejam apodados de fascistas. Ou até se pode deduzir que a cronista defende que um voto de um eleitor fascista deve contar menos do que um voto de um autêntico democrata (a definição ficaria por sua conta, mas não custa pressentir a latitude do conceito).
Um “bom fascista” é uma contradição de termos; mas é uma figura de estilo que fica a jeito dos tutores da democracia, quantos deles defensores de ideias, práticas e lógicas que se reduzem a uma entorse da democracia. Dizia: um “bom fascista” é o idiota útil dos bons pastores da democracia (do entendimento que dela têm). Gostamos de atrelar o futuro aos fantasmas do passado. Esbracejar a ameaça do fascista (do mau fascista – de todos os fascistas) tem a utilidade de desviar as atenções para o que genuinamente estes pastores da democracia defendem e – agora adivinho eu, para rivalizar com o Prof. Boaventura – poriam em prática se agarrassem sozinhos o poder.
Tamanha presciência esqueceu-se de reconhecer o mais importante: o fascista derrotado foi a eleições, o que não é compatível com a semântica do fascista; e o fascista derrotado, pese embora esteja a ter uma indigestão com a derrota, não torceu as instituições para negar validade ao escrutínio popular, o que também não honra a linhagem do fascista. A realidade mediata teima em desmentir o Tarot do Prof. Boaventura.
Esta atualidade é pantanosa. Por causa dos radicais que coexistem com a democracia e exibem toda a sua boçalidade. E por causa dos radicais de outra cepa, que teriam uma existência estéril se os fascistas fossem erradicados. É desta atualidade pantanosa, pútrida e intelectualmente desonesta que apetece exilar.
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