Sempre que aparece o sol-posto, sobem as cortinas que ditam a efemeridade. Não se atrevam balanços de cada dia assim saldado. É uma contabilidade sem cabimento. Em vez disso, o que sobra do dia, já na sua metamorfose de noite, é decantado. Os mandamentos de inviáveis curadores das almas assim diriam. Nós não somos desse rebanho – mas não somos de rebanho nenhum.
Pondo o sono como refém da noite, entra-se no mundo dos acasos. Somos viajantes sem sabermos para onde nos levam os argonautas que retiram lucidez aos enredos dos sonhos. Não há mapa que apanhe a medula dos sonhos que desfilam no cenário em que somos viajantes passivos. Somos levados na curadoria dos sonhos, às vezes dos pesadelos. Não sabemos como somos ora figurantes, ora personagens de corpo inteiro, da matéria onírica.
É como se o mundo se escondesse num tremendo parêntesis, ou albergasse uma realidade paralela onde os sentidos se refugiam em hibernação. Diríamos que falamos um idioma que não conhecemos. Que fomos a lugares nunca andados. Que houve gente que esteve na vida sem estar. Sem culpa formada, somos arrastados para circunstâncias que nem sabemos terem acontecido. Tudo se passa como se mergulhássemos nas águas tépidas do mar e por lá nos mantivéssemos, à espera de salva-vidas. À espera de outras vidas.
No acaso dos sonhos (ora dos pesadelos) é outra vida que se vive. Numa argamassa que muitos diriam inviável, ela desdobra-se nos palcos proporcionados pela matéria insubstancial dos sonhos. Uma vida que se conduz em dueto, no diálogo de surdos entre a vida assim considerada (a da lucidez extraída ao sono) e a que se motiva no sortilégio da matéria onírica.
Se o enredo dos sonhos fosse inventariado, que literatura seria legada? Talvez uma fusão entre a cacofonia das sensações irrepresentáveis e o vulcão acrisolado que ateia as convulsões interiores. Um labirinto à espera de tradução. E nós, personagens domadas pela voragem dos sonhos, anotando em cadernos gordos o futuro dos sonhos (ou os sonhos futuros).
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